gambiologia

Oslodum

Meu texto em inglês sobre gambiarra e cultura maker foi publicado novamente, agora na Tvergastein, baseada em um centro de pesquisa ligado à Universidade de Oslo. Esta edição da publicação tinha por tema "Leaving the box - Entrepreneurship, Innovation and Initiatives". Para quem me lê em português via internet meu papo já está manjado, mas para quem quiser dar uma olhada nos outros textos da publicação pode checar aqui ou esperar que uma cópia impressa vai aparecer no Ubalab nas próximas semanas.

Meio-relato: residência na VCUQatar, em Doha

Como já relatei anteriormente aqui neste blog, passei em novembro de 2014 duas semanas em Doha, capital do Catar. Fui a convite do mestrado em design da VCUQatar, no papel de designer residente. O tema da minha residência era "repair culture".

Desde que retornei do Qatar, estou rabiscando um relato de viagem. Daqueles relatos longos e detalhados que eu costumo fazer (como este ou este). Mas não saiu. Pode ser a falta de chuvas, pode ser o tempo curto em meio a um monte de tarefas profissionais, voluntárias e episódios novos na vida. Ou pode ser o fato de que eu ainda nem decidi se escrevo Catar ou Qatar. Mas por enquanto vou deixar de lado o relato mais longo, e publico aqui somente alguns apontamentos.

Doha me impressionou menos pelas diferenças do que pelas semelhanças com um certo estilo de vida brasileiro e em especial paulistano. Meus anfitriões na universidade, ambos europeus, chegaram a me perguntar o que eu tinha achado do tratamento VIP que recebi em Doha - hotel, refeições, motorista, ar condicionado. Fiquei algo constrangido de admitir que, ainda que inconfortável, não tinha estranhado aquela situação tanto quanto eles. Além disso, a cidade avessa a pedestres, os shopping centers, a cafonice dos prédios brilhantes que mudam de cor e o consumismo e ostentação, tão risíveis quanto previsíveis, também cheiram muito à capital paulistana. Como se Doha fosse um retrato do que São Paulo pode se tornar se uma série de decisões erradas continuarem a ser tomadas. Mas a pior piada que surgiu foi que, já naquela época, a deserta Doha tinha mais acesso a água do que a São Paulo que um dia foi recortada por rios.

Existem inúmeras peculiaridades sobre o Catar que podem ser encontradas na wikipedia. Certamente despontam algumas diferenças em relação a outros países da região. As quase duas décadas de reinado do Emir Hamad Al Thani (e de igual ou possivelmente maior importância, de sua esposa Mozah) fizeram o país se diferenciar na região. O Catar hoje tem o trigésimo primeiro IDH no mundo (o maior do mundo árabe). Mulheres podem estudar (e vou falar mais sobre isso em seguida). A instituição cultural do Qatar tem o segundo maior orçamento de cultura no mundo (ok, quase totalmente gasto com ostentação, mas ainda assim uma posição notável). O país criou e sustenta a Al-Jazeera, que eu passei a assistir quando estava por lá e me impressionou por tratar de maneira abrangente temas difíceis. Os habitantes do país não pagam impostos, e os cidadãos locais têm educação e saúde de graça. É claro que, aqui, surge uma questão importante. Os cidadãos são uma minoria - cerca de trezentos mil num universo que beira os dois milhões de habitantes. Nem, de um lado, os executivos ou trabalhadores do conhecimento ocidentais, nem de outro os trabalhadores braçais, de comércio e serviços do sudeste asiático e outros países árabes, costumam ter o direito de naturalizar-se. Existe um regime de classes bastante marcado em Doha. Um motorista de Bangladesh, por exemplo, provavelmente não seria admitido em um pubs dos hoteis internacionais para bebericar uma cerveja que é proibida em qualquer outro estabelecimento do país. Eu gostaria de afirmar que situações idênticas não acontecem em São Paulo, mas não tenho tanta certeza assim.

A universidade, que fica dentro da Education City de Doha, era um mundo à parte. Fui muito bem recebido pelos professores Thomas Modeen e Marco Bruno. Trabalhei com um grupo de dez estudantes dos dois anos do mestrado. Eram oito meninas e dois garotos. De dez nacionalidades distintas, mas ninguém do Catar. Egito, Barein, Kuwait, França, Palestina, Estados Unidos, Canadá, Bangladesh, Paquistão e Sudão. Grande parte daquela turma não teria oportunidades de estudar em seus próprios países. Com uma única exceção, o restante era de muçulmanos. Todo mundo muito criativo, competente e bem preparado. Boa parte deles vinha da arquitetura ou design de moda. A faculdade tem todo tipo de laboratório - de fotografia, vídeo, fabricação digital, joalheria, um repositório de materiais, e por aí vai. E a biblioteca é deliciosa.

Meu período de residência começou com algumas conversas sobre lixo, descarte e reuso. O pessoal já tinha uma boa noção das questões críticas nessas áreas, mas nunca tinha sido uma prioridade para eles pensar nesses temas. Exibi e conversamos sobre alguns vídeos - ilha das flores, obsolescência programada, lixo extraordinário, digital handcraft.

Debatemos um pouco sobre uma questão que me parece essencial. Segue abaixo um rascunho do que deve voltar em breve como um texto à parte.

A tal "cultura maker" surgiu, ao menos em parte, em cenários que costumavam apontar para o reuso e o conserto como fundamentais para garantir futuros mais sustentáveis. Mas hoje em dia parece que tudo isso foi deixado de lado e que todo esse universo de hype está voltado para criar protótipos - feitos de plástico derretido de difícil reciclagem - de novos produtos. Como se o mundo já não tivesse objetos fabricados em demasia!

A mim, parece absurdo que as tecnologias de fabricação digital não estejam fundamentalmente voltadas para se pensar maneiras de continuar usando objetos que já estão por aí. Me parece inadequado e falso enquadrá-las na referência de uma "nova era industrial". A era industrial trouxe, é certo, avanços importantíssimos para a humanidade. Mas gerou também alienação, desigualdade e impacto ambiental profundos. Chega de dar sobrevida à era industrial - precisamos de outros modelos de produção e distribuição. O crescimento do interesse da opinião pública por alimentação orgânica, tratamento de lixo, habilidades manuais e afins me parecem ser o contrabalanço dessa tendência, e precisamos ter isso em mente.

Enfim, tivemos a oportunidade de debater estas questões (e o fato de eu conseguir resumi-las em dois parágrafos é um dos maiores frutos da minha residência na VCUQ), e decidimos as ações para as duas semanas que eu ficaria por lá. Em primeiro lugar, visitaríamos alguns artesãos que ainda produzem coisas com as próprias mãos - marceneiros, alfaiates, tapeceiros, etc. A ideia era conversar sobre seu ofício, habilidades, ferramentas, formação e afins. Faríamos o mesmo com pessoas que consertavam coisas - principalmente sapateiros e relojoeiros. Também planejamos saídas a um cemitério de pneus e um cemitério de automóveis, ambos no meio do deserto.

A pesquisa de campo deu muitos resultados. O único senão foi o cemitério de automóveis, que só pudemos ver do lado de fora porque chegamos depois do horário de visitações. Mas de resto, fizemos excelentes entrevistas, conversas e imagens.

Outra atividade que nos propusemos a desenvolver foi um Repair Cafe dentro da VCUQ. Em uma sociedade de alto poder aquisitivo e praticamente sem nenhuma preocupação com o descarte apropriado de objetos sem uso, pareceu-nos interessante desenvolver um encontro voltado ao conserto e ao reuso. Tivemos dois dias - um para receber os materiais e outro para explorar possibilidades com eles. Trabalhamos também com objetos encontrados no cemitério de pneus. Saímos com uma série de objetos reaproveitados, e mais do que isso com algumas indicações de como organizar uma metodologia colaborativa voltada ao conserto de coisas.

Os últimos dias foram dedicados a organizar a documentação de meu período por lá, que resultou em uma publicação digital. Tenho ainda que rever meu texto de introdução, que ainda não está perfeito, e em breve vou agitar para fechar essa publicação. Assim que rolar, publico por aqui.

De resto, faltam todos os meus apontamentos culturais e do cotidiano do Catar. Esses eu deixo para contar pessoalmente, talvez ao aroma do café turco que trouxe de lá. Mas voltei satisfeito de ter tocado uma série de questões importantes e de ter conhecido bastante gente interessante e que ainda vai fazer muita coisa pelo mundo afora.

E ainda reencontrei na sincronicidade uma amiga que não via fazia tempo, vi o sol descer nas dunas, tomei café numa tenda árabe no deserto. Fui ao shopping, ao supermercado, ao mercado central. Nos fones de ouvido estiveram principalmente a trilha sonora de Código 46 e o Ghost World do Dj Spooky. Ah, e tenho muito mais fotos no flickr.

P.S.: publiquei também mais algumas anotações junto a outro post no blog redelabs.

Chegando a Doha

Há alguns meses fui convidado a vir em novembro a Doha, capital do Catar, como designer residente junto ao curso de Mestrado em Design da VCU. O convite faz parte de uma série de ações de intercâmbio entre o Brasil e o Catar que estão sendo desenvolvidas ao longo deste ano. Vou ficar duas semanas trabalhando com um grupo de estudantes com questões de descarte, reuso, conserto e afins. Como já escrevi no começo da semana, espero durante estes dias trabalhar com a ideia de uma "cultura de conserto" como crítica à tal "cultura de fabricação" que vem na esteira dos makerspaces e das impressoras 3D.

Desenvolver isso no Catar está me parecendo apropriado, para minha surpresa. A chegada repentina do Petróleo por aqui criou uma sociedade de consumo que veio totalmente de cima para baixo. O país tem muito dinheiro: o maior ou segundo maior PIB per capita, o melhor IDH da região, o segundo maior investimento em arte do mundo. Por trás do investimento em arte e cultura, aliás, está uma organização chefiada uma princesa hoje com 31 anos de idade, que já falou sobre diversidade no TED. Mas todo esse dinheiro pode ter trazido de forma muito mais acelerada um processo que a gente já apontou no Brasil - a substituição da sabedoria do fazer, do consertar e do adaptar pelo mero consumo. Se uma coisa quebrou, eu compro outra.

Não sei se isso realmente acontece por aqui, mas essa é uma das coisas que vamos investigar durante os próximos dias. Quero crer que mesmo com o acesso a brinquedos mais caros, continua existindo o impulso de adaptar e fazer as coisas, como o cara da moto iluminada. Encontrei esse vídeo, aliás, quando pesquisava sobre o Gulf Futurism, uma provocação que não me parece bem resolvida mas mostra um pouco da tensão entre os grandes planos que acompanharam o gigantesco crescimento econômico e a vida das pessoas. Vou deixar para contar em outro post mais narrativo, mas já adianto que depois de dar umas voltas por aqui não paro de associar Doha com São Paulo. As duas cidades parecem ter muito em comum (para além da piada com a falta de chuvas, ok?), mas em velocidades muito diferentes.

Volto logo com as primeiras impressões.

Gambiarra studies

Nesta quinta embarco para o Catar para uma residência, a convite da VCUQatar. Vou passar duas semanas lá com um grupo de estudantes do mestrado em design da VCU, tratando de gambiarra. Para mim é uma oportunidade de articular minimamente o discurso da "cultura de conserto" que me parece uma crítica necessária à tal "cultura maker". Vamos ver o quanto dá pra avançar sobre isso.

Fabricação, conserto e "porque dá"

Raquel Rennó mandou pela rede social do capeta um bom artigo no Medium com o título "Yes we can. But should we?", que levanta uma visão um pouco mais crítica pra toda a coisa da "cultura maker". Traduzindo livremente um trecho:

Parece haver uma confusão conceitual sobre o que a impressão 3D possibilita ou não. Ela nos permite encantar uma criança de quatro anos criando praticamente do nada um mini Darth Vader? Sim, permite. Mas o objeto não se materializa do nada. Uma impressora 3D consome de cinquenta a cem vezes mais energia elétrica para fazer um objeto do que o processo de injeção de plástico moldado. Além disso, as emissões de uma impressora 3D de mesa são similares a queimar um cigarro ou cozinhar em um fogão a gás ou elétrico. E o material escolhido para todas essas novas coisas que estamos clamando por fazer é esmagadoramente o plástico. De certo modo, é um deslocamento ambiental para o lado inverso, contrapondo-se a leis recentes para reduzir o uso de plástico que banem sacolas plásticas e estimulam a reformulação de embalagens. Ao mesmo tempo em que mais pessoas levam sacolas de tecido para o supermercado, o plástico se acumula em outros campos, da Techshop à Target.

De fato, a moda corrente da tal "cultura maker" exibe algumas características dignas de questionamento. Uma delas é justamente essa orientação ao "make", que cristaliza com vocabulário o hábito de "fazer" coisas, mas é usualmente interpretado simplesmente como "fabricar novas coisas". Não que a cultura maker tenha sido assim desde o início. Ainda acho que existia um romantismo nos primeiros tempos (bem capturado no Makers de Cory Doctorow), em que a ênfase vinha de fazer as coisas com as mãos, experimentar, desviar usos, aproveitar ao máximo os recursos à volta. Um espírito que por esses lados a gente aproxima da gambiarra (aqui um monte de posts e links sobre "gambiologia", que também é o nome do coletivo mineiro).

Mas daquilo que inicialmente surgia como postura crítica ao consumismo exacerbado, a assim chamada cultura maker hoje parece ter virado somente mais um produtinho na grande prateleira das ideias prontas para vender no capitalismo hiperconectado. Aí um monte de gente com seus Macbooks se junta para comprar Makerbots e ficar brincando de inventar o novo produto que vai estourar nos mercados. E no meio do caminho jogam fora um monte de plástico derretido para prototipar o melhor suporte de ipad do mundo.

Nem vou falar de novo sobre o desperdício de oportunidades quando os talentos voltam-se somente ao mercado. Já falei isso em 2011, e não vi muita coisa mudar desde então:

Hoje em dia, jovens de cidades pequenas que têm potencial precisam migrar para grandes centros em busca de oportunidades. É raro que voltem, o que leva a uma espécie de êxodo criativo. Mesmo aqueles que chegam às cidades grandes também precisam fazer uma escolha difícil: podem vender seu talento criativo ao mercado - por vezes de maneira equilibrada, mas em muitos casos limitando-se a ajudar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro; ou então trocar seu futuro por capital especulativo. Podem também tentar usar suas habilidades para ajudar a sociedade - mas para isso precisam conviver com precariedade e instabilidade. Essa é uma condição insustentável para um país que tanto precisa de inovação e criatividade. Por que razão uma pessoa jovem, criativa, talentosa e consciente não encontra maneiras viáveis de usar essas qualidades para ajudar a sociedade? Alguma coisa está errada. E não me interessa que isso seja verdade no mundo inteiro. Estamos em uma época de transformações e de expectativas altas.

Mas além desse vício no mercado e no vocabulário da indústria (fabricação, protótipos, e de carona vêm junto o público-alvo, a guerrilha e todas aquelas deprimentes metáforas bélicas), essas iniciativas passam longe de qualquer preocupação com sustentabilidade. E olha que já existem construções conceituais muito interessantes no mínimo para refletir, como o cradle to cradle (que por mais inexequível que seja oferece ao menos bons argumentos para refletir sobre as finalidades dos esforços criativos). E a impressão que tenho aqui no Brasil é que se está jogando fora a gambiarra (que é nossa, tropicalizada, precária e adaptável) por uma imagem idealizada de cultura maker limpinha dos labs do primeiro mundo. Sendo que a gambiarra parece ter muito mais potência do que a linguagem dos protótipos industriais, como sugeriu o Gabriel Menotti. Aqui um trecho da minha dissertação sobre isso:

Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.

E para continuar na viagem egocêntrica (como já fui categorizado por um mala por aí), mais um trecho da dissertação:

De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).

Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, bruto. Os objetos produzidos raramente são recicláveis. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.

No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.

E para encerrar o festival de autocitações, uma nota de rodapé sobre as impressoras 3D:

A própria nomenclatura utilizada para denominá-la[s] indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.

Enfim, algumas inquietações que já estavam latentes mas o artigo recomendado pela Raquel fez despertar de novo. Daqui a dois meses darei um curso sobre gambiarra e "repair culture" e pretendo retomar algumas dessas reflexões. Por enquanto, o único comentário: gambiarra vale muito mais do que a maker culture. E daqui a cinco anos, quando a moda passar, a gambiarra vai continuar necessária. Espero que não tenha sido deixada de lado pelos ventos do hype.

Os Mendi e a gambiologia

Traços de Gambiologia em Sahlins: "O 'pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um 'objeto' em via de extinção".

Os Mendi fazem até jóias a partir do lixo europeu. Quando Lederman e seu marido, Mike Merrill, iniciaram seu projeto de pesquisa, eles - compreende-se bem por quê - lamentaram a indigência dos Mendi, ao invés de saudar sua criatividade. Que outra conclusão se poderia tirar de um povo que fabricava pulseiras a partir de latas de conserva e chapéus a partir de embalagens de pão? De gente que, após haver passado toda a sua vida descalça, agora andava com galochas larguíssimas, ou às vezes com um pé só de uma galocha rasgada? De um povo que comprava rádios caros que, entretanto, logo quebravam e não tinham como ser consertados? Merrill, um especialista em história do trabalho, concluiu que, embora essa apropriação do refugo da "civilização" não possuísse nenhum significado funcional, ela devia significar algo ¾ provavelmente um sentimento de privação afrontosa. "Um pé de sapato", escreveu ele em seu diário, "não tem utilidade, e provavelmente até dificulta o andar (sobretudo se está sem o salto... ). Mas um pé de sapato significa alguma coisa. Significa um desejo, por parte do dono, de ter um par de sapatos; e de ter não apenas sapatos, mas tudo o mais também" (Lederman 1986a:7). Eis que, por falta de um pé de sapato, a cultura se perdeu. Utilizando uma antropologia do ancien régime, a velha lógica funcionalista da correspondência necessária entre um tipo de tecnologia e a totalidade cultural, os etnógrafos se convenceram inicialmente de que os desejos dos Mendi por objetos estrangeiros iriam necessariamente atrelá-los aos significados e relações portados por essas mercadorias, a ponto de comprometer suas formas tradicionais de existência:

"Pois machados de aço, tecidos industrializados, carros, serviços de mesa, arroz e peixe enlatado, pregos etc. não são objetos neutros [...]. Quando penetram na área, carregam de maneira visível e influente suas origens sociais [...]. Os valores do mercado mundial acabam necessariamente predominando [...]. Ao fim e ao cabo, a estrutura social tradicional será erodida pela ação corrosiva dos artigos que agora são usados de modo tradicional, mas que já contêm dentro de si outras e mais poderosas intenções" (Lederman 1986a:7).

Não obstante, até o início dos anos 80, após toda uma geração de experiência com o governo colonial e pós-colonial, e após uma experiência considerável com o mercado através da venda tanto de produtos como de mão-de-obra, tal erosão ainda não havia acontecido. Nem as mercadorias nem as relações envolvidas em sua aquisição haviam transformado as estruturas mendi de sociabilidade ou suas concepções de uma existência humana adequada ¾ a não ser no sentido de as intensificar. Abastecidos de uma maior riqueza em dinheiro, conchas de madrepérola, porcos e bens estrangeiros, os cerimoniais clânicos e as trocas entre parentes atingiram dimensões inéditas, tanto em termos de escala como de freqüência (Lederman 1985; 1986b:153). Os Mendi possuem agora cerimônias maiores e mais parentes do que jamais tiveram. Lederman observou que as relações sociais indígenas haviam gerado uma demanda de moeda moderna bem maior que aquela exigida pelas instâncias locais do mercado capitalista (1986b:232). Refletindo acerca da disposição dos brancos para o consumo privado, um amigo Mendi caracterizou a economia européia como um "sistema de subsistência", em contraposição ao interesse de seu próprio povo em dar e receber, e que seria, este sim, um verdadeiro sistema de trocas (1986b:236). Por essa não se esperava...13

Os Mendi, escreve Lederman, interagiam com os estrangeiros "sem perder o sentido de si mesmos" (1986b:9). O sistema cultural local "ainda é a estrutura dentro da qual os Mendi definem, categorizam e orquestram os novos objetos e modos de agir que lhes foram apresentados durante a última geração" (1986b:227). Mas observe-se que invocar desse modo uma estrutura ou lógica culturais, como sendo aquilo que orquestra a transformação histórica, não é o mesmo que falar de uma reprodução estereotipada do costume tradicional. A tradição consiste aqui nos modos distintos como se dá a transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente. Nas terras altas da Nova Guiné, isso pode significar um desenvolvimento da competição cerimonial interclânica, ocorrendo concomitantemente ao declínio da guerra. Mas a competição pode se manifestar também em projetos de construção de igrejas (1986b:230)14.

 

Metamáquina

O pessoal da Metamáquina lançou no catarse um pedido de crowdfunding para montar kits de impressoras 3D replicáveis aqui no Brasil. Já têm meu total apoio. Mais informações abaixo:

Apropriação crítica

Apropriação crítica

Industrialização e distanciamento

As últimas centenas de anos presenciaram profundas mudanças na maneira como produzimos coisas. Até meados do século XIX, os bens eram manufaturados por artesãos. Roupas, móveis, utensílios domésticos, objetos decorativos, medicamentos, armas, ferramentas, instrumentos científicos – praticamente tudo era feito à mão, e quase sempre vendido localmente. Sucessivas inovações na fabricação de objetos, transformações nas formas como as sociedades se organizavam, a criação de novos meios de transporte e o acesso a imensas fontes de matérias-primas e outros recursos naturais nas colônias alavancaram a chamada revolução industrial, a partir da Europa e em direção ao resto do mundo.
Através da mecanização e da produção em série, a produtividade aumentou exponencialmente. Bens que anteriormente só estavam disponíveis às elites puderam ser oferecidos a todos, passando a ser considerados necessidades básicas. A qualidade de vida de uma considerável parcela da população aumentou, em um ritmo sem precedentes.

Isso tudo potencializou outras transformações. Ganhou espaço crescente a democracia representativa (“o pior sistema político, com exceção de todos os outros que foram tentados”, segundo Churchill). Formaram-se as cidades contemporâneas, ambiente propício para a atividade industrial: uma maior concentração urbana oferece mão de obra a custo baixo e mercados dinâmicos para escoar a produção. A sociedade tornou-se mais complexa, suas relações mediadas por grandes organizações e instituições. Uma entre as muitas consequências dessas mudanças foi o gradual distanciamento entre produtores e consumidores. E é importante analisar essa divisão.

Antes da produção industrial, a fabricação era um processo manual e consciente. O artesão dominava praticamente todas as etapas do tratamento e transformação de matérias-primas em produtos. O conhecimento sobre o processo fabril tinha muito valor, e era transmitido de geração em geração. Existia a possibilidade do contato pessoal entre quem fabricava alguma coisa e aqueles que a utilizavam. Por mais que o artesão pudesse contestar interferências em seu trabalho e negar-se a atender a pedidos, algum diálogo era sempre possível. Por outro lado, ele também precisava saber usar aquilo que fabricava. Ou seja, deveria ser ele mesmo o mais exigente de seus usuários. Com o passar dos anos, o artesão aplicado tornava-se mestre em seu ofício, formando novas gerações e incrementando o domínio técnico daquela área do conhecimento como um todo.

O desenvolvimento da produção industrial teve fortes implicações nesse contexto, à medida em que afastou a produção do consumo, ao ponto da desconexão total. Criaram-se mundos totalmente separados. De um lado ficaram os operários na indústria, os braços responsáveis pela fabricação dos produtos. São até hoje pessoas que em sua maioria conhecem apenas uma ínfima parte do processo de fabricação. Muitas vezes elas não utilizam os produtos que fabricam, e frequentemente nem saberiam como fazê-lo. Repetidamente juntam uma peça com a outra, apertam parafusos, empilham, verificam o resultado e tornam a repetir o processo, como o personagem de Chaplin em “Tempos Modernos”. Por não terem uma visão geral do processo, essas pessoas necessitam de chefes que as orientem, disciplinem e controlem. Já esses chefes tornam-se por sua vez mais uma classe à parte, os gerentes. Responsáveis pela domesticação da força de trabalho, são em geral conservadores, bajuladores da elite e avessos a mudanças.

Já na outra ponta da industrialização - o “mercado consumidor” - cada indivíduo passou a ser visto muito mais como um comprador em potencial do que como sujeito social. Em vez do contato pessoal com os produtores, resignou-se à impessoalidade do marketing e dos setores de atendimento ao consumidor das grandes empresas. Não sabe mais quem foram as pessoas que produziram aquilo que compra, e é levado a nem se interessar por isso.

Nesse cenário, alguma coisa humana se perdeu. É tristemente real a anedota da criança que, perguntada sobre de onde vem o leite, responde que vem “da caixinha”. Mais triste ainda é perceber quão mais inconscientes ainda somos quando adultos. Essa ignorância se estende para praticamente todos os produtos industrializados. É raro o momento em que paramos para pensar como, onde e por quem são feitas as coisas que nos cercam, de onde vieram as matérias-primas que deram origem a essas coisas, ou mesmo se determinado produto funcionaria melhor se fosse feito de outra forma. Existe a ilusão de que tudo é feito por máquinas, de que o elemento humano não existe mais. E isso está longe de ser verdade: todo produto tem em sua origem recursos naturais. Todo produto requer um esforço criativo inicial seguido por sucessivas fases de trabalho manual, frequentemente realizado sob condições precárias. Não percebemos, mas estamos sempre usando ou carregando objetos – roupas, aparelhos, móveis, tudo – que embutem pedaços do planeta, ideias e suor.

Obsolescência programada

O andar da história amplificou ainda mais a tendência industrial ao distanciamento e à frieza na relação entre fabricação e uso. A era dos mercados de massa, impulsionada por novos meios de transporte e comunicação, alcançaria níveis sem precedentes de afastamento e distorção.

Como retratado no recente documentário produzido pela TV espanhola “Comprar, tirar, comprar” (“Comprar, jogar fora, comprar”), em meados do século XX representantes de grandes corporações industriais se reuniram secretamente para estabelecer que seus produtos deveriam durar menos tempo. Ou seja, frente à necessidade visceral das corporações continuarem crescendo ano após ano, seus dirigentes simplesmente decidiram a portas fechadas que os consumidores teriam acesso a produtos menos duráveis, que precisariam ser substituídos em prazos menores! O documentário dá um exemplo emblemático: uma estação de bombeiros norte-americana onde se encontra uma lâmpada incandescente, que recentemente completou cem anos de idade, e ainda está em funcionamento. Nos dias de hoje, as lâmpadas são deliberadamente fabricadas para durar um número limitado de horas de uso. Ou seja, nenhuma lâmpada fabricada hoje vai durar cem anos. E isso não é coincidência: é “planejamento estratégico”, no jargão corporativo.

O mesmo acontece com impressoras, meias-calças, automóveis, eletrodomésticos e muitos outros produtos. Essa é uma tendência intencional, chamada de obsolescência programada. Segundo essa perspectiva, qualquer produto só vale alguma coisa para o fabricante até o instante em que é vendido. A partir do momento que está em posse do consumidor, quanto antes for descartado melhor. Em outras palavras, qualquer produto vendido já é considerado lixo. Essa visão se perpetua nos dois lados do processo produtivo: tanto através dos gerentes que se sobrepõem à mão de obra industrial, condicionando seu trabalho à continuada necessidade de aumentar o faturamento e a lucratividade, produzindo coisas que duram menos tempo; quanto nos departamentos de marketing, que se esforçam em condicionar o comportamento dos consumidores para que continuem comprando produtos novos, mesmo que não precisem deles. Existem setores da administração de empresas especializados em simular relacionamentos prolongados com seus clientes, que são vistos não mais como compradores de produtos (e menos ainda como pessoas), mas sim fontes de faturamento para toda a vida.

É importante perceber o peso desses mediadores. Um engenheiro competente e bem intencionado que queira desenhar um produto mais durável ou que permita o reuso será provavelmente demovido por seus colegas e chefia. Se insistir, a empresa pode até considerá-lo uma espécie de traidor, por conta de uma alegada necessidade de competir pelo desenvolvimento de produtos que durem menos e proporcionem maior lucro, a fim de “não perder espaço para a concorrência”. E o mais assustador é que nesses ambientes isso é tratado quase como uma verdade universal. As escolas de negócios fazem uma lavagem cerebral, repetindo frases feitas com o objetivo de desumanizar ainda mais a produção e comercialização de bens e serviços.

Outro elemento importante a perceber: as empresas em geral se utilizam de linguagem bélica para descrever suas atividades: “público-alvo”, “derrotar os oponentes”, “conquistar”, “dominar”. Não é por acaso. Guerra e comércio estão conectados há muito tempo. A produção industrial, e com ela o poder corporativo, está ligada profundamente à manutenção das estruturas de poder na sociedade. O premiado documentário britânico “Máquinas de Felicidade” (The Century of the Self) mostra como técnicas oriundas da psicologia foram utilizadas desde o começo do século XX para forjar uma sociedade individualista e politicamente frágil, lançando mão do hábito do consumo como indulgência acessível a todos. Isso vai muito além da produção e do comércio, infantiliza a população, e tem reflexos profundos na relação das pessoas com as tecnologias que adquirem.

A quem pertencem os objetos?

Quando pagamos por um produto, acreditamos poder fazer o que quisermos com ele. Isso deveria incluir todos os usos previstos pelo fabricante, além de todos os outros usos que quiséssemos propor. Nas condições atuais, pode não ser bem assim. Particularmente em relação a eletrônicos, existe uma série de restrições legais sobre como podemos utilizá-los. São cada vez mais frequentes os casos de fabricantes que penalizam os usuários que promovem o desvio de funções de seus aparelhos. Um exemplo: a Sony ameaçou judicialmente entusiastas por desenvolverem software que habilitava o robô Aibo a dançar. Em outras palavras: a empresa proibiu usuários – que, diga-se de passagem, pagaram caro pelos equipamentos que compraram - de fazerem usos que ela própria não consegue oferecer. Por mera compulsão de controle, ela interfere em um aspecto fundamental para a promoção da inovação e seu potencial de transformação social: a chamada indeterminação do objeto técnico, ideia bem desenvolvida pelo francês Gilbert de Simondon (cujos textos vêm sendo traduzidos ao português e disponibilizados na internet por Thiago Novaes).

Esse vício de controle não se limita ao software. Existem também crescentes restrições ao armazenamento e circulação de conteúdo. Por exemplo, se você comprar um CD de música e fizer uma cópia de segurança para manter as músicas caso o CD se extravie ou seja furtado, estará incorrendo em crime. Mesmo que não tenha a intenção de distribuir para outras pessoas, a indústria fonográfica impõe uma legislação que trata a todos como criminosos. A Fundação Software Livre mantém uma campanha chamada “Deliberadamente defeituosos”, através da qual critica os aparelhos eletrônicos que adotam sistemas de gerenciamento de direitos autorais. Afirma que esses equipamentos já são projetados de maneira a retirar liberdades de seus usuários, o que tem consequências negativas para o conhecimento humano em geral.

O autor de literatura ciberpunk William Gibson diz que “a rua encontra seus próprios usos para as coisas”. Isso é uma característica de todo e qualquer objeto, ainda mais presente em se tratando de ferramentas com múltiplos usos potenciais como computadores, roteadores, telefones, tablets e afins. Com um pouco de habilidade técnica, uma boa pesquisa na internet e muita vontade, um monitor LCD pode virar um projetor, uma impressora matricial se transformar em instrumento de música, uma webcam servir de base para um microscópio digital, um celular ser usado como leitor de código de barras. Nesse sentido, restrições à liberdade de uso tendem a frear o impulso criativo. Grupos de pessoas motivadas e com liberdade de experimentar são uma das bases da inovação. Se não fossem os amadores promovendo o desvio de função dos kits de eletrônica nos anos setenta, talvez o computador pessoal nunca tivesse sido inventado. Precisamos garantir que essa liberdade continue existindo.

Apropriação crítica e bricotecnologia

Ao longo do tempo e dos diversos projetos desenvolvidos pela rede MetaReciclagem, trabalhamos sempre entre dois extremos: de um lado a adoção rápida de novas tecnologias e das novas possibilidades que elas trazem, do outro a crítica ao consumismo superficial. A busca do equilíbrio parece estar no que costumamos chamar de apropriação crítica das tecnologias. Ela toma forma na aproximação entre produção e uso de conhecimento aplicado que tem emergido internacionalmente. O software livre é um exemplo, estimulando ciclos econômicos que em vez de operarem em função da escassez optam pela abundância e pela generosidade. A chamada cena maker é um exemplo ainda mais concreto: pessoas no mundo inteiro fazendo uso de conhecimento compartilhado em rede para criar objetos e dispositivos interconectados. Disso saem ideias para aparelhos que realizam praticamente qualquer coisa: estações de monitoramento ambiental, objetos fabricados em impressoras 3D, protótipos de aparelhos focados nas necessidades de pequenos grupos de pessoas. Eu tenho chamado isso de bricotecnologia – a revalorização do saber-fazer, aplicado às tecnologias de informação e operando em rede.

A apropriação crítica passa pela valorização da inovação cotidiana, representada pela prática popular da gambiarra. Símbolo do impulso criativo orientado à solução de problemas concretos mesmo sem acesso ao conhecimento, ferramentas ou materiais adequados, a gambiarra torna-se ainda mais importante em uma época de crise econômica global, iminente colapso ambiental e consumismo exacerbado. Baseia-se na manipulação (entendida como o ato pegar com as mãos e interferir nos objetos) e na experimentação (sequência de tentativas, erros e novas tentativas). Dá origem a uma criatividade desobediente, que não se assusta com a precariedade e sempre vê o mundo como lotado de potencialidades - uma verdadeira lição que as culturas populares brasileiras têm a dar em tempos de crise econômica, colapso ambiental e disparidade social.

Quando em contato com as inúmeras possibilidades das tecnologias de comunicação em rede, em especial aquelas ligadas ao software livre, temos um potencial de transformação gigantesco. Indivíduos que tenham a gambiarra como habilidade essencial, e se utilizem do conhecimento aberto disponível em rede para adquirir ideias e técnicas, podem ser vistos como inventores em potencial de novos arranjos criativos, espalhados por todas as classes sociais e localidades.

A apropriação crítica supõe o amadorismo – que vem do latim amare, referindo-se às pessoas que se dedicam a um ofício mais por paixão do que por necessidade objetiva. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, os amadores estão em geral mais abertos à inovação. Justamente por não terem o domínio completo da técnica estabelecida e por não ocuparem posição nas hierarquias profissionais, têm mais espaço para o desvio e a transformação. Têm a possibilidade de questionar certezas e imposições, e com isso descobrir melhores maneiras de fazer as coisas.

Outro traço característico das culturas populares que faz muito sentido para a apropriação crítica de tecnologias de comunicação é o mutirão – agrupamento dinâmico que se forma para cumprir tarefas coletivas e em seguida se desfaz. O mutirão possibilita a efetiva cooperação entre pessoas e grupos, aumentando sua capacidade individual e promovendo uma sociabilidade livre e produtiva. As redes sociais online dialogam muito bem com a lógica do mutirão, promovendo laços de contato entre pessoas que não têm um convívio cotidiano. É natural que a abertura a novos contatos estimule a criatividade, de modo que estimular iniciativas dinâmicas em rede é mais uma forma de potencializá-la.

A bricotecnologia e a apropriação crítica sugerem a reconciliação entre manufatura e necessidades cotidianas, libertando a fabricação da exigência de escala. Gabriel Menotti propôs, no artigo “Gambiarra: The Prototyping Perspective” (artigo cuja tradução para português deve sair na compilação sobre “Gambiologia” do MutGamb, uma edição que ironicamente está há dois anos aguardando finalização), a análise do contraste entre a gambiarra e o protótipo. Se esta indica uma fase prévia à fabricação propriamente dita, aquela dissolve a fronteira entre esses dois estados e se coloca como solução intermediária: servindo ao uso ao mesmo tempo em que se mantém aberta para reinvenção. Uma vez que as ferramentas e materiais necessários para fabricar objetos estão se tornando cada vez mais acessíveis, é importante desenvolver as habilidades técnicas e a criatividade que podem fazer uso desses recursos, e assegurar que apontem a ciclos de inovação baseados em conhecimento livre. A apropriação crítica, a bricolagem, a gambiarra e o mutirão são elementos fundamentais dessa equação.


Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo para a plataforma Arquivo Vivo.

Aberto... até aqui

Pra responder à provocação do Liquuid ("Android, um novo windows") que o Orlando publicou no blog da MetaReciclagem, uma outra provocação que eu fiz no diálogo na casinha com Novaes, durante o Ciclo Gambiarra em 2007.

Levando em conta que tem cada vez mais, ou pelo menos a gente tá tomando cada vez mais consciẽncia de movimentos, grupos, projetos, pessoas, que têm essa intenção da gambiarra, essa questão de desconstruir o objeto técnico, desconstruir ideias pré-concebidas, desconstruir paradigmas... pensando na possibilidade de isso ser uma parte de um sistema que tá aí, mas que pode pautar o desenvolvimento tecnológico. Ou seja, por causa de toda essa movimentação a gente acabar influenciando o poder de decisão do processo de planejamento e desenvolvimento do objeto técnico. Tô pensando na possibilidade de existirem objetos já pensados com essa questão da indeterminação. Ou seja, um objeto técnico produzido com isso. Como é que fica essa relação com, sei lá, imaginar que uma corporação vai encampar essa ideia, lançar um objeto técnico com essa indeterminação, mas às vezes vai lançar essa indeterminação controlada - vai dizer "até aqui tá aberto, mas tem uma parte do software que é fechada". (...) Eles lançam uma indeterminação - tem som, microfone, wifi, faz o que quiser, conecta à internet e tal, mas nessa parte aqui vocês não tocam. E até que ponto isso não acaba desmobilizando a gente. Quer dizer, toda a questão de resistência - a gente acaba dizendo "ah, os caras estão entrando no jogo, ajudando o software livre". Como é que a gente pode garantir que o caráter de inovação, de contracultura, resistência, seja lá como chame, não vai ser apropriado, não vai ser desmobilizado a partir do momento em que essas ideias passem a influenciar o próprio processo de desenvolvimento dos produtos.

Infelizmente, eu tendo a concordar com o sentido geral da provocação do Liquuid. Android é menos aberto do que deveria ser.

Antropofagia, tropicalismo, remix

"A economia das redes, das relações pós nacionais, dos novos territórios afetivos e produtivos, parece nos mostrar uma espécie de brasilização do planeta, tanto no que pode haver de clichê quanto de potente nesta expressão. A antropofagia surge como a única paz possível neste ambiente de diferenças que aparecem como nas imagens do tropicalismo: a 'geléia geral brasileira' vira a 'geléia geral global'. A antropofagia é assim a paz construída a partir da potência, da singularidade, e não da renúncia e do medo.

Um movimento que no Brasil propriamente dito tem a ver com a ascensão social de milhões de pobres que vimos nos últimos anos, com a maneira como a antropofagia se radicaliza numa inventividade de remix que explode qualquer limite possível do “campo da cultura” ou da “classe artística”, e faz a criatividade atravessar a vida social de uma tal forma que várias novas possibilidades econômicas, e várias novas formas de relação entre trabalho e vida, aparecem a partir daí."

Uma entre muitas ideias interessantes no artigo "De Caetanos, cotas e passeatas contra guitarras", no site da Universidade Nômade. Dica de Giuseppe Cocco. Lembrei do Viveiros de Castro: Tudo é Brasil. E da gambiologia, claro.