fabricação

Fabricação, conserto e "porque dá"

Raquel Rennó mandou pela rede social do capeta um bom artigo no Medium com o título "Yes we can. But should we?", que levanta uma visão um pouco mais crítica pra toda a coisa da "cultura maker". Traduzindo livremente um trecho:

Parece haver uma confusão conceitual sobre o que a impressão 3D possibilita ou não. Ela nos permite encantar uma criança de quatro anos criando praticamente do nada um mini Darth Vader? Sim, permite. Mas o objeto não se materializa do nada. Uma impressora 3D consome de cinquenta a cem vezes mais energia elétrica para fazer um objeto do que o processo de injeção de plástico moldado. Além disso, as emissões de uma impressora 3D de mesa são similares a queimar um cigarro ou cozinhar em um fogão a gás ou elétrico. E o material escolhido para todas essas novas coisas que estamos clamando por fazer é esmagadoramente o plástico. De certo modo, é um deslocamento ambiental para o lado inverso, contrapondo-se a leis recentes para reduzir o uso de plástico que banem sacolas plásticas e estimulam a reformulação de embalagens. Ao mesmo tempo em que mais pessoas levam sacolas de tecido para o supermercado, o plástico se acumula em outros campos, da Techshop à Target.

De fato, a moda corrente da tal "cultura maker" exibe algumas características dignas de questionamento. Uma delas é justamente essa orientação ao "make", que cristaliza com vocabulário o hábito de "fazer" coisas, mas é usualmente interpretado simplesmente como "fabricar novas coisas". Não que a cultura maker tenha sido assim desde o início. Ainda acho que existia um romantismo nos primeiros tempos (bem capturado no Makers de Cory Doctorow), em que a ênfase vinha de fazer as coisas com as mãos, experimentar, desviar usos, aproveitar ao máximo os recursos à volta. Um espírito que por esses lados a gente aproxima da gambiarra (aqui um monte de posts e links sobre "gambiologia", que também é o nome do coletivo mineiro).

Mas daquilo que inicialmente surgia como postura crítica ao consumismo exacerbado, a assim chamada cultura maker hoje parece ter virado somente mais um produtinho na grande prateleira das ideias prontas para vender no capitalismo hiperconectado. Aí um monte de gente com seus Macbooks se junta para comprar Makerbots e ficar brincando de inventar o novo produto que vai estourar nos mercados. E no meio do caminho jogam fora um monte de plástico derretido para prototipar o melhor suporte de ipad do mundo.

Nem vou falar de novo sobre o desperdício de oportunidades quando os talentos voltam-se somente ao mercado. Já falei isso em 2011, e não vi muita coisa mudar desde então:

Hoje em dia, jovens de cidades pequenas que têm potencial precisam migrar para grandes centros em busca de oportunidades. É raro que voltem, o que leva a uma espécie de êxodo criativo. Mesmo aqueles que chegam às cidades grandes também precisam fazer uma escolha difícil: podem vender seu talento criativo ao mercado - por vezes de maneira equilibrada, mas em muitos casos limitando-se a ajudar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro; ou então trocar seu futuro por capital especulativo. Podem também tentar usar suas habilidades para ajudar a sociedade - mas para isso precisam conviver com precariedade e instabilidade. Essa é uma condição insustentável para um país que tanto precisa de inovação e criatividade. Por que razão uma pessoa jovem, criativa, talentosa e consciente não encontra maneiras viáveis de usar essas qualidades para ajudar a sociedade? Alguma coisa está errada. E não me interessa que isso seja verdade no mundo inteiro. Estamos em uma época de transformações e de expectativas altas.

Mas além desse vício no mercado e no vocabulário da indústria (fabricação, protótipos, e de carona vêm junto o público-alvo, a guerrilha e todas aquelas deprimentes metáforas bélicas), essas iniciativas passam longe de qualquer preocupação com sustentabilidade. E olha que já existem construções conceituais muito interessantes no mínimo para refletir, como o cradle to cradle (que por mais inexequível que seja oferece ao menos bons argumentos para refletir sobre as finalidades dos esforços criativos). E a impressão que tenho aqui no Brasil é que se está jogando fora a gambiarra (que é nossa, tropicalizada, precária e adaptável) por uma imagem idealizada de cultura maker limpinha dos labs do primeiro mundo. Sendo que a gambiarra parece ter muito mais potência do que a linguagem dos protótipos industriais, como sugeriu o Gabriel Menotti. Aqui um trecho da minha dissertação sobre isso:

Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.

E para continuar na viagem egocêntrica (como já fui categorizado por um mala por aí), mais um trecho da dissertação:

De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).

Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, bruto. Os objetos produzidos raramente são recicláveis. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.

No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.

E para encerrar o festival de autocitações, uma nota de rodapé sobre as impressoras 3D:

A própria nomenclatura utilizada para denominá-la[s] indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.

Enfim, algumas inquietações que já estavam latentes mas o artigo recomendado pela Raquel fez despertar de novo. Daqui a dois meses darei um curso sobre gambiarra e "repair culture" e pretendo retomar algumas dessas reflexões. Por enquanto, o único comentário: gambiarra vale muito mais do que a maker culture. E daqui a cinco anos, quando a moda passar, a gambiarra vai continuar necessária. Espero que não tenha sido deixada de lado pelos ventos do hype.

Fablab DIY

Da página de estratégias do Refab-Space de James Wallbank em Sheffield, uma conclusão à qual também chegamos quase uma década atrás na MetaReciclagem:

Imagine building your own TV; it'd be fun and informative, make you aware of what you're buying, and what goes into it. Now imagine building 1000 TVs a week; is that 1000 times more fun? Of course not, it's a repetitive, mind-numbing job.

É por isso que montar uma "fábrica" de recondicionamento de lixo eletrônico sempre me pareceu entediante.

Apropriação crítica

Apropriação crítica

Industrialização e distanciamento

As últimas centenas de anos presenciaram profundas mudanças na maneira como produzimos coisas. Até meados do século XIX, os bens eram manufaturados por artesãos. Roupas, móveis, utensílios domésticos, objetos decorativos, medicamentos, armas, ferramentas, instrumentos científicos – praticamente tudo era feito à mão, e quase sempre vendido localmente. Sucessivas inovações na fabricação de objetos, transformações nas formas como as sociedades se organizavam, a criação de novos meios de transporte e o acesso a imensas fontes de matérias-primas e outros recursos naturais nas colônias alavancaram a chamada revolução industrial, a partir da Europa e em direção ao resto do mundo.
Através da mecanização e da produção em série, a produtividade aumentou exponencialmente. Bens que anteriormente só estavam disponíveis às elites puderam ser oferecidos a todos, passando a ser considerados necessidades básicas. A qualidade de vida de uma considerável parcela da população aumentou, em um ritmo sem precedentes.

Isso tudo potencializou outras transformações. Ganhou espaço crescente a democracia representativa (“o pior sistema político, com exceção de todos os outros que foram tentados”, segundo Churchill). Formaram-se as cidades contemporâneas, ambiente propício para a atividade industrial: uma maior concentração urbana oferece mão de obra a custo baixo e mercados dinâmicos para escoar a produção. A sociedade tornou-se mais complexa, suas relações mediadas por grandes organizações e instituições. Uma entre as muitas consequências dessas mudanças foi o gradual distanciamento entre produtores e consumidores. E é importante analisar essa divisão.

Antes da produção industrial, a fabricação era um processo manual e consciente. O artesão dominava praticamente todas as etapas do tratamento e transformação de matérias-primas em produtos. O conhecimento sobre o processo fabril tinha muito valor, e era transmitido de geração em geração. Existia a possibilidade do contato pessoal entre quem fabricava alguma coisa e aqueles que a utilizavam. Por mais que o artesão pudesse contestar interferências em seu trabalho e negar-se a atender a pedidos, algum diálogo era sempre possível. Por outro lado, ele também precisava saber usar aquilo que fabricava. Ou seja, deveria ser ele mesmo o mais exigente de seus usuários. Com o passar dos anos, o artesão aplicado tornava-se mestre em seu ofício, formando novas gerações e incrementando o domínio técnico daquela área do conhecimento como um todo.

O desenvolvimento da produção industrial teve fortes implicações nesse contexto, à medida em que afastou a produção do consumo, ao ponto da desconexão total. Criaram-se mundos totalmente separados. De um lado ficaram os operários na indústria, os braços responsáveis pela fabricação dos produtos. São até hoje pessoas que em sua maioria conhecem apenas uma ínfima parte do processo de fabricação. Muitas vezes elas não utilizam os produtos que fabricam, e frequentemente nem saberiam como fazê-lo. Repetidamente juntam uma peça com a outra, apertam parafusos, empilham, verificam o resultado e tornam a repetir o processo, como o personagem de Chaplin em “Tempos Modernos”. Por não terem uma visão geral do processo, essas pessoas necessitam de chefes que as orientem, disciplinem e controlem. Já esses chefes tornam-se por sua vez mais uma classe à parte, os gerentes. Responsáveis pela domesticação da força de trabalho, são em geral conservadores, bajuladores da elite e avessos a mudanças.

Já na outra ponta da industrialização - o “mercado consumidor” - cada indivíduo passou a ser visto muito mais como um comprador em potencial do que como sujeito social. Em vez do contato pessoal com os produtores, resignou-se à impessoalidade do marketing e dos setores de atendimento ao consumidor das grandes empresas. Não sabe mais quem foram as pessoas que produziram aquilo que compra, e é levado a nem se interessar por isso.

Nesse cenário, alguma coisa humana se perdeu. É tristemente real a anedota da criança que, perguntada sobre de onde vem o leite, responde que vem “da caixinha”. Mais triste ainda é perceber quão mais inconscientes ainda somos quando adultos. Essa ignorância se estende para praticamente todos os produtos industrializados. É raro o momento em que paramos para pensar como, onde e por quem são feitas as coisas que nos cercam, de onde vieram as matérias-primas que deram origem a essas coisas, ou mesmo se determinado produto funcionaria melhor se fosse feito de outra forma. Existe a ilusão de que tudo é feito por máquinas, de que o elemento humano não existe mais. E isso está longe de ser verdade: todo produto tem em sua origem recursos naturais. Todo produto requer um esforço criativo inicial seguido por sucessivas fases de trabalho manual, frequentemente realizado sob condições precárias. Não percebemos, mas estamos sempre usando ou carregando objetos – roupas, aparelhos, móveis, tudo – que embutem pedaços do planeta, ideias e suor.

Obsolescência programada

O andar da história amplificou ainda mais a tendência industrial ao distanciamento e à frieza na relação entre fabricação e uso. A era dos mercados de massa, impulsionada por novos meios de transporte e comunicação, alcançaria níveis sem precedentes de afastamento e distorção.

Como retratado no recente documentário produzido pela TV espanhola “Comprar, tirar, comprar” (“Comprar, jogar fora, comprar”), em meados do século XX representantes de grandes corporações industriais se reuniram secretamente para estabelecer que seus produtos deveriam durar menos tempo. Ou seja, frente à necessidade visceral das corporações continuarem crescendo ano após ano, seus dirigentes simplesmente decidiram a portas fechadas que os consumidores teriam acesso a produtos menos duráveis, que precisariam ser substituídos em prazos menores! O documentário dá um exemplo emblemático: uma estação de bombeiros norte-americana onde se encontra uma lâmpada incandescente, que recentemente completou cem anos de idade, e ainda está em funcionamento. Nos dias de hoje, as lâmpadas são deliberadamente fabricadas para durar um número limitado de horas de uso. Ou seja, nenhuma lâmpada fabricada hoje vai durar cem anos. E isso não é coincidência: é “planejamento estratégico”, no jargão corporativo.

O mesmo acontece com impressoras, meias-calças, automóveis, eletrodomésticos e muitos outros produtos. Essa é uma tendência intencional, chamada de obsolescência programada. Segundo essa perspectiva, qualquer produto só vale alguma coisa para o fabricante até o instante em que é vendido. A partir do momento que está em posse do consumidor, quanto antes for descartado melhor. Em outras palavras, qualquer produto vendido já é considerado lixo. Essa visão se perpetua nos dois lados do processo produtivo: tanto através dos gerentes que se sobrepõem à mão de obra industrial, condicionando seu trabalho à continuada necessidade de aumentar o faturamento e a lucratividade, produzindo coisas que duram menos tempo; quanto nos departamentos de marketing, que se esforçam em condicionar o comportamento dos consumidores para que continuem comprando produtos novos, mesmo que não precisem deles. Existem setores da administração de empresas especializados em simular relacionamentos prolongados com seus clientes, que são vistos não mais como compradores de produtos (e menos ainda como pessoas), mas sim fontes de faturamento para toda a vida.

É importante perceber o peso desses mediadores. Um engenheiro competente e bem intencionado que queira desenhar um produto mais durável ou que permita o reuso será provavelmente demovido por seus colegas e chefia. Se insistir, a empresa pode até considerá-lo uma espécie de traidor, por conta de uma alegada necessidade de competir pelo desenvolvimento de produtos que durem menos e proporcionem maior lucro, a fim de “não perder espaço para a concorrência”. E o mais assustador é que nesses ambientes isso é tratado quase como uma verdade universal. As escolas de negócios fazem uma lavagem cerebral, repetindo frases feitas com o objetivo de desumanizar ainda mais a produção e comercialização de bens e serviços.

Outro elemento importante a perceber: as empresas em geral se utilizam de linguagem bélica para descrever suas atividades: “público-alvo”, “derrotar os oponentes”, “conquistar”, “dominar”. Não é por acaso. Guerra e comércio estão conectados há muito tempo. A produção industrial, e com ela o poder corporativo, está ligada profundamente à manutenção das estruturas de poder na sociedade. O premiado documentário britânico “Máquinas de Felicidade” (The Century of the Self) mostra como técnicas oriundas da psicologia foram utilizadas desde o começo do século XX para forjar uma sociedade individualista e politicamente frágil, lançando mão do hábito do consumo como indulgência acessível a todos. Isso vai muito além da produção e do comércio, infantiliza a população, e tem reflexos profundos na relação das pessoas com as tecnologias que adquirem.

A quem pertencem os objetos?

Quando pagamos por um produto, acreditamos poder fazer o que quisermos com ele. Isso deveria incluir todos os usos previstos pelo fabricante, além de todos os outros usos que quiséssemos propor. Nas condições atuais, pode não ser bem assim. Particularmente em relação a eletrônicos, existe uma série de restrições legais sobre como podemos utilizá-los. São cada vez mais frequentes os casos de fabricantes que penalizam os usuários que promovem o desvio de funções de seus aparelhos. Um exemplo: a Sony ameaçou judicialmente entusiastas por desenvolverem software que habilitava o robô Aibo a dançar. Em outras palavras: a empresa proibiu usuários – que, diga-se de passagem, pagaram caro pelos equipamentos que compraram - de fazerem usos que ela própria não consegue oferecer. Por mera compulsão de controle, ela interfere em um aspecto fundamental para a promoção da inovação e seu potencial de transformação social: a chamada indeterminação do objeto técnico, ideia bem desenvolvida pelo francês Gilbert de Simondon (cujos textos vêm sendo traduzidos ao português e disponibilizados na internet por Thiago Novaes).

Esse vício de controle não se limita ao software. Existem também crescentes restrições ao armazenamento e circulação de conteúdo. Por exemplo, se você comprar um CD de música e fizer uma cópia de segurança para manter as músicas caso o CD se extravie ou seja furtado, estará incorrendo em crime. Mesmo que não tenha a intenção de distribuir para outras pessoas, a indústria fonográfica impõe uma legislação que trata a todos como criminosos. A Fundação Software Livre mantém uma campanha chamada “Deliberadamente defeituosos”, através da qual critica os aparelhos eletrônicos que adotam sistemas de gerenciamento de direitos autorais. Afirma que esses equipamentos já são projetados de maneira a retirar liberdades de seus usuários, o que tem consequências negativas para o conhecimento humano em geral.

O autor de literatura ciberpunk William Gibson diz que “a rua encontra seus próprios usos para as coisas”. Isso é uma característica de todo e qualquer objeto, ainda mais presente em se tratando de ferramentas com múltiplos usos potenciais como computadores, roteadores, telefones, tablets e afins. Com um pouco de habilidade técnica, uma boa pesquisa na internet e muita vontade, um monitor LCD pode virar um projetor, uma impressora matricial se transformar em instrumento de música, uma webcam servir de base para um microscópio digital, um celular ser usado como leitor de código de barras. Nesse sentido, restrições à liberdade de uso tendem a frear o impulso criativo. Grupos de pessoas motivadas e com liberdade de experimentar são uma das bases da inovação. Se não fossem os amadores promovendo o desvio de função dos kits de eletrônica nos anos setenta, talvez o computador pessoal nunca tivesse sido inventado. Precisamos garantir que essa liberdade continue existindo.

Apropriação crítica e bricotecnologia

Ao longo do tempo e dos diversos projetos desenvolvidos pela rede MetaReciclagem, trabalhamos sempre entre dois extremos: de um lado a adoção rápida de novas tecnologias e das novas possibilidades que elas trazem, do outro a crítica ao consumismo superficial. A busca do equilíbrio parece estar no que costumamos chamar de apropriação crítica das tecnologias. Ela toma forma na aproximação entre produção e uso de conhecimento aplicado que tem emergido internacionalmente. O software livre é um exemplo, estimulando ciclos econômicos que em vez de operarem em função da escassez optam pela abundância e pela generosidade. A chamada cena maker é um exemplo ainda mais concreto: pessoas no mundo inteiro fazendo uso de conhecimento compartilhado em rede para criar objetos e dispositivos interconectados. Disso saem ideias para aparelhos que realizam praticamente qualquer coisa: estações de monitoramento ambiental, objetos fabricados em impressoras 3D, protótipos de aparelhos focados nas necessidades de pequenos grupos de pessoas. Eu tenho chamado isso de bricotecnologia – a revalorização do saber-fazer, aplicado às tecnologias de informação e operando em rede.

A apropriação crítica passa pela valorização da inovação cotidiana, representada pela prática popular da gambiarra. Símbolo do impulso criativo orientado à solução de problemas concretos mesmo sem acesso ao conhecimento, ferramentas ou materiais adequados, a gambiarra torna-se ainda mais importante em uma época de crise econômica global, iminente colapso ambiental e consumismo exacerbado. Baseia-se na manipulação (entendida como o ato pegar com as mãos e interferir nos objetos) e na experimentação (sequência de tentativas, erros e novas tentativas). Dá origem a uma criatividade desobediente, que não se assusta com a precariedade e sempre vê o mundo como lotado de potencialidades - uma verdadeira lição que as culturas populares brasileiras têm a dar em tempos de crise econômica, colapso ambiental e disparidade social.

Quando em contato com as inúmeras possibilidades das tecnologias de comunicação em rede, em especial aquelas ligadas ao software livre, temos um potencial de transformação gigantesco. Indivíduos que tenham a gambiarra como habilidade essencial, e se utilizem do conhecimento aberto disponível em rede para adquirir ideias e técnicas, podem ser vistos como inventores em potencial de novos arranjos criativos, espalhados por todas as classes sociais e localidades.

A apropriação crítica supõe o amadorismo – que vem do latim amare, referindo-se às pessoas que se dedicam a um ofício mais por paixão do que por necessidade objetiva. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, os amadores estão em geral mais abertos à inovação. Justamente por não terem o domínio completo da técnica estabelecida e por não ocuparem posição nas hierarquias profissionais, têm mais espaço para o desvio e a transformação. Têm a possibilidade de questionar certezas e imposições, e com isso descobrir melhores maneiras de fazer as coisas.

Outro traço característico das culturas populares que faz muito sentido para a apropriação crítica de tecnologias de comunicação é o mutirão – agrupamento dinâmico que se forma para cumprir tarefas coletivas e em seguida se desfaz. O mutirão possibilita a efetiva cooperação entre pessoas e grupos, aumentando sua capacidade individual e promovendo uma sociabilidade livre e produtiva. As redes sociais online dialogam muito bem com a lógica do mutirão, promovendo laços de contato entre pessoas que não têm um convívio cotidiano. É natural que a abertura a novos contatos estimule a criatividade, de modo que estimular iniciativas dinâmicas em rede é mais uma forma de potencializá-la.

A bricotecnologia e a apropriação crítica sugerem a reconciliação entre manufatura e necessidades cotidianas, libertando a fabricação da exigência de escala. Gabriel Menotti propôs, no artigo “Gambiarra: The Prototyping Perspective” (artigo cuja tradução para português deve sair na compilação sobre “Gambiologia” do MutGamb, uma edição que ironicamente está há dois anos aguardando finalização), a análise do contraste entre a gambiarra e o protótipo. Se esta indica uma fase prévia à fabricação propriamente dita, aquela dissolve a fronteira entre esses dois estados e se coloca como solução intermediária: servindo ao uso ao mesmo tempo em que se mantém aberta para reinvenção. Uma vez que as ferramentas e materiais necessários para fabricar objetos estão se tornando cada vez mais acessíveis, é importante desenvolver as habilidades técnicas e a criatividade que podem fazer uso desses recursos, e assegurar que apontem a ciclos de inovação baseados em conhecimento livre. A apropriação crítica, a bricolagem, a gambiarra e o mutirão são elementos fundamentais dessa equação.


Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo para a plataforma Arquivo Vivo.