metareciclagem

Cultura do conserto

Publiquei nesta semana uma versão rápida (somente com o texto-base em inglês e sem imagens) da compilação que estou montando sobre meu período como residente na VCUQatar ano passado. O material já publicado está disponível em versão para o kindle (bem baratinho, leva aí) ou livre e grátis no meu site. Aproveitei para também fazer minha primeira experiência com o medium e publiquei lá um trecho do texto principal.

Fabricação, conserto e "porque dá"

Raquel Rennó mandou pela rede social do capeta um bom artigo no Medium com o título "Yes we can. But should we?", que levanta uma visão um pouco mais crítica pra toda a coisa da "cultura maker". Traduzindo livremente um trecho:

Parece haver uma confusão conceitual sobre o que a impressão 3D possibilita ou não. Ela nos permite encantar uma criança de quatro anos criando praticamente do nada um mini Darth Vader? Sim, permite. Mas o objeto não se materializa do nada. Uma impressora 3D consome de cinquenta a cem vezes mais energia elétrica para fazer um objeto do que o processo de injeção de plástico moldado. Além disso, as emissões de uma impressora 3D de mesa são similares a queimar um cigarro ou cozinhar em um fogão a gás ou elétrico. E o material escolhido para todas essas novas coisas que estamos clamando por fazer é esmagadoramente o plástico. De certo modo, é um deslocamento ambiental para o lado inverso, contrapondo-se a leis recentes para reduzir o uso de plástico que banem sacolas plásticas e estimulam a reformulação de embalagens. Ao mesmo tempo em que mais pessoas levam sacolas de tecido para o supermercado, o plástico se acumula em outros campos, da Techshop à Target.

De fato, a moda corrente da tal "cultura maker" exibe algumas características dignas de questionamento. Uma delas é justamente essa orientação ao "make", que cristaliza com vocabulário o hábito de "fazer" coisas, mas é usualmente interpretado simplesmente como "fabricar novas coisas". Não que a cultura maker tenha sido assim desde o início. Ainda acho que existia um romantismo nos primeiros tempos (bem capturado no Makers de Cory Doctorow), em que a ênfase vinha de fazer as coisas com as mãos, experimentar, desviar usos, aproveitar ao máximo os recursos à volta. Um espírito que por esses lados a gente aproxima da gambiarra (aqui um monte de posts e links sobre "gambiologia", que também é o nome do coletivo mineiro).

Mas daquilo que inicialmente surgia como postura crítica ao consumismo exacerbado, a assim chamada cultura maker hoje parece ter virado somente mais um produtinho na grande prateleira das ideias prontas para vender no capitalismo hiperconectado. Aí um monte de gente com seus Macbooks se junta para comprar Makerbots e ficar brincando de inventar o novo produto que vai estourar nos mercados. E no meio do caminho jogam fora um monte de plástico derretido para prototipar o melhor suporte de ipad do mundo.

Nem vou falar de novo sobre o desperdício de oportunidades quando os talentos voltam-se somente ao mercado. Já falei isso em 2011, e não vi muita coisa mudar desde então:

Hoje em dia, jovens de cidades pequenas que têm potencial precisam migrar para grandes centros em busca de oportunidades. É raro que voltem, o que leva a uma espécie de êxodo criativo. Mesmo aqueles que chegam às cidades grandes também precisam fazer uma escolha difícil: podem vender seu talento criativo ao mercado - por vezes de maneira equilibrada, mas em muitos casos limitando-se a ajudar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro; ou então trocar seu futuro por capital especulativo. Podem também tentar usar suas habilidades para ajudar a sociedade - mas para isso precisam conviver com precariedade e instabilidade. Essa é uma condição insustentável para um país que tanto precisa de inovação e criatividade. Por que razão uma pessoa jovem, criativa, talentosa e consciente não encontra maneiras viáveis de usar essas qualidades para ajudar a sociedade? Alguma coisa está errada. E não me interessa que isso seja verdade no mundo inteiro. Estamos em uma época de transformações e de expectativas altas.

Mas além desse vício no mercado e no vocabulário da indústria (fabricação, protótipos, e de carona vêm junto o público-alvo, a guerrilha e todas aquelas deprimentes metáforas bélicas), essas iniciativas passam longe de qualquer preocupação com sustentabilidade. E olha que já existem construções conceituais muito interessantes no mínimo para refletir, como o cradle to cradle (que por mais inexequível que seja oferece ao menos bons argumentos para refletir sobre as finalidades dos esforços criativos). E a impressão que tenho aqui no Brasil é que se está jogando fora a gambiarra (que é nossa, tropicalizada, precária e adaptável) por uma imagem idealizada de cultura maker limpinha dos labs do primeiro mundo. Sendo que a gambiarra parece ter muito mais potência do que a linguagem dos protótipos industriais, como sugeriu o Gabriel Menotti. Aqui um trecho da minha dissertação sobre isso:

Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.

E para continuar na viagem egocêntrica (como já fui categorizado por um mala por aí), mais um trecho da dissertação:

De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).

Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, bruto. Os objetos produzidos raramente são recicláveis. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.

No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.

E para encerrar o festival de autocitações, uma nota de rodapé sobre as impressoras 3D:

A própria nomenclatura utilizada para denominá-la[s] indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.

Enfim, algumas inquietações que já estavam latentes mas o artigo recomendado pela Raquel fez despertar de novo. Daqui a dois meses darei um curso sobre gambiarra e "repair culture" e pretendo retomar algumas dessas reflexões. Por enquanto, o único comentário: gambiarra vale muito mais do que a maker culture. E daqui a cinco anos, quando a moda passar, a gambiarra vai continuar necessária. Espero que não tenha sido deixada de lado pelos ventos do hype.

Fablab DIY

Da página de estratégias do Refab-Space de James Wallbank em Sheffield, uma conclusão à qual também chegamos quase uma década atrás na MetaReciclagem:

Imagine building your own TV; it'd be fun and informative, make you aware of what you're buying, and what goes into it. Now imagine building 1000 TVs a week; is that 1000 times more fun? Of course not, it's a repetitive, mind-numbing job.

É por isso que montar uma "fábrica" de recondicionamento de lixo eletrônico sempre me pareceu entediante.

Os Mendi e a gambiologia

Traços de Gambiologia em Sahlins: "O 'pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um 'objeto' em via de extinção".

Os Mendi fazem até jóias a partir do lixo europeu. Quando Lederman e seu marido, Mike Merrill, iniciaram seu projeto de pesquisa, eles - compreende-se bem por quê - lamentaram a indigência dos Mendi, ao invés de saudar sua criatividade. Que outra conclusão se poderia tirar de um povo que fabricava pulseiras a partir de latas de conserva e chapéus a partir de embalagens de pão? De gente que, após haver passado toda a sua vida descalça, agora andava com galochas larguíssimas, ou às vezes com um pé só de uma galocha rasgada? De um povo que comprava rádios caros que, entretanto, logo quebravam e não tinham como ser consertados? Merrill, um especialista em história do trabalho, concluiu que, embora essa apropriação do refugo da "civilização" não possuísse nenhum significado funcional, ela devia significar algo ¾ provavelmente um sentimento de privação afrontosa. "Um pé de sapato", escreveu ele em seu diário, "não tem utilidade, e provavelmente até dificulta o andar (sobretudo se está sem o salto... ). Mas um pé de sapato significa alguma coisa. Significa um desejo, por parte do dono, de ter um par de sapatos; e de ter não apenas sapatos, mas tudo o mais também" (Lederman 1986a:7). Eis que, por falta de um pé de sapato, a cultura se perdeu. Utilizando uma antropologia do ancien régime, a velha lógica funcionalista da correspondência necessária entre um tipo de tecnologia e a totalidade cultural, os etnógrafos se convenceram inicialmente de que os desejos dos Mendi por objetos estrangeiros iriam necessariamente atrelá-los aos significados e relações portados por essas mercadorias, a ponto de comprometer suas formas tradicionais de existência:

"Pois machados de aço, tecidos industrializados, carros, serviços de mesa, arroz e peixe enlatado, pregos etc. não são objetos neutros [...]. Quando penetram na área, carregam de maneira visível e influente suas origens sociais [...]. Os valores do mercado mundial acabam necessariamente predominando [...]. Ao fim e ao cabo, a estrutura social tradicional será erodida pela ação corrosiva dos artigos que agora são usados de modo tradicional, mas que já contêm dentro de si outras e mais poderosas intenções" (Lederman 1986a:7).

Não obstante, até o início dos anos 80, após toda uma geração de experiência com o governo colonial e pós-colonial, e após uma experiência considerável com o mercado através da venda tanto de produtos como de mão-de-obra, tal erosão ainda não havia acontecido. Nem as mercadorias nem as relações envolvidas em sua aquisição haviam transformado as estruturas mendi de sociabilidade ou suas concepções de uma existência humana adequada ¾ a não ser no sentido de as intensificar. Abastecidos de uma maior riqueza em dinheiro, conchas de madrepérola, porcos e bens estrangeiros, os cerimoniais clânicos e as trocas entre parentes atingiram dimensões inéditas, tanto em termos de escala como de freqüência (Lederman 1985; 1986b:153). Os Mendi possuem agora cerimônias maiores e mais parentes do que jamais tiveram. Lederman observou que as relações sociais indígenas haviam gerado uma demanda de moeda moderna bem maior que aquela exigida pelas instâncias locais do mercado capitalista (1986b:232). Refletindo acerca da disposição dos brancos para o consumo privado, um amigo Mendi caracterizou a economia européia como um "sistema de subsistência", em contraposição ao interesse de seu próprio povo em dar e receber, e que seria, este sim, um verdadeiro sistema de trocas (1986b:236). Por essa não se esperava...13

Os Mendi, escreve Lederman, interagiam com os estrangeiros "sem perder o sentido de si mesmos" (1986b:9). O sistema cultural local "ainda é a estrutura dentro da qual os Mendi definem, categorizam e orquestram os novos objetos e modos de agir que lhes foram apresentados durante a última geração" (1986b:227). Mas observe-se que invocar desse modo uma estrutura ou lógica culturais, como sendo aquilo que orquestra a transformação histórica, não é o mesmo que falar de uma reprodução estereotipada do costume tradicional. A tradição consiste aqui nos modos distintos como se dá a transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente. Nas terras altas da Nova Guiné, isso pode significar um desenvolvimento da competição cerimonial interclânica, ocorrendo concomitantemente ao declínio da guerra. Mas a competição pode se manifestar também em projetos de construção de igrejas (1986b:230)14.

 

Apropriação crítica

Apropriação crítica

Industrialização e distanciamento

As últimas centenas de anos presenciaram profundas mudanças na maneira como produzimos coisas. Até meados do século XIX, os bens eram manufaturados por artesãos. Roupas, móveis, utensílios domésticos, objetos decorativos, medicamentos, armas, ferramentas, instrumentos científicos – praticamente tudo era feito à mão, e quase sempre vendido localmente. Sucessivas inovações na fabricação de objetos, transformações nas formas como as sociedades se organizavam, a criação de novos meios de transporte e o acesso a imensas fontes de matérias-primas e outros recursos naturais nas colônias alavancaram a chamada revolução industrial, a partir da Europa e em direção ao resto do mundo.
Através da mecanização e da produção em série, a produtividade aumentou exponencialmente. Bens que anteriormente só estavam disponíveis às elites puderam ser oferecidos a todos, passando a ser considerados necessidades básicas. A qualidade de vida de uma considerável parcela da população aumentou, em um ritmo sem precedentes.

Isso tudo potencializou outras transformações. Ganhou espaço crescente a democracia representativa (“o pior sistema político, com exceção de todos os outros que foram tentados”, segundo Churchill). Formaram-se as cidades contemporâneas, ambiente propício para a atividade industrial: uma maior concentração urbana oferece mão de obra a custo baixo e mercados dinâmicos para escoar a produção. A sociedade tornou-se mais complexa, suas relações mediadas por grandes organizações e instituições. Uma entre as muitas consequências dessas mudanças foi o gradual distanciamento entre produtores e consumidores. E é importante analisar essa divisão.

Antes da produção industrial, a fabricação era um processo manual e consciente. O artesão dominava praticamente todas as etapas do tratamento e transformação de matérias-primas em produtos. O conhecimento sobre o processo fabril tinha muito valor, e era transmitido de geração em geração. Existia a possibilidade do contato pessoal entre quem fabricava alguma coisa e aqueles que a utilizavam. Por mais que o artesão pudesse contestar interferências em seu trabalho e negar-se a atender a pedidos, algum diálogo era sempre possível. Por outro lado, ele também precisava saber usar aquilo que fabricava. Ou seja, deveria ser ele mesmo o mais exigente de seus usuários. Com o passar dos anos, o artesão aplicado tornava-se mestre em seu ofício, formando novas gerações e incrementando o domínio técnico daquela área do conhecimento como um todo.

O desenvolvimento da produção industrial teve fortes implicações nesse contexto, à medida em que afastou a produção do consumo, ao ponto da desconexão total. Criaram-se mundos totalmente separados. De um lado ficaram os operários na indústria, os braços responsáveis pela fabricação dos produtos. São até hoje pessoas que em sua maioria conhecem apenas uma ínfima parte do processo de fabricação. Muitas vezes elas não utilizam os produtos que fabricam, e frequentemente nem saberiam como fazê-lo. Repetidamente juntam uma peça com a outra, apertam parafusos, empilham, verificam o resultado e tornam a repetir o processo, como o personagem de Chaplin em “Tempos Modernos”. Por não terem uma visão geral do processo, essas pessoas necessitam de chefes que as orientem, disciplinem e controlem. Já esses chefes tornam-se por sua vez mais uma classe à parte, os gerentes. Responsáveis pela domesticação da força de trabalho, são em geral conservadores, bajuladores da elite e avessos a mudanças.

Já na outra ponta da industrialização - o “mercado consumidor” - cada indivíduo passou a ser visto muito mais como um comprador em potencial do que como sujeito social. Em vez do contato pessoal com os produtores, resignou-se à impessoalidade do marketing e dos setores de atendimento ao consumidor das grandes empresas. Não sabe mais quem foram as pessoas que produziram aquilo que compra, e é levado a nem se interessar por isso.

Nesse cenário, alguma coisa humana se perdeu. É tristemente real a anedota da criança que, perguntada sobre de onde vem o leite, responde que vem “da caixinha”. Mais triste ainda é perceber quão mais inconscientes ainda somos quando adultos. Essa ignorância se estende para praticamente todos os produtos industrializados. É raro o momento em que paramos para pensar como, onde e por quem são feitas as coisas que nos cercam, de onde vieram as matérias-primas que deram origem a essas coisas, ou mesmo se determinado produto funcionaria melhor se fosse feito de outra forma. Existe a ilusão de que tudo é feito por máquinas, de que o elemento humano não existe mais. E isso está longe de ser verdade: todo produto tem em sua origem recursos naturais. Todo produto requer um esforço criativo inicial seguido por sucessivas fases de trabalho manual, frequentemente realizado sob condições precárias. Não percebemos, mas estamos sempre usando ou carregando objetos – roupas, aparelhos, móveis, tudo – que embutem pedaços do planeta, ideias e suor.

Obsolescência programada

O andar da história amplificou ainda mais a tendência industrial ao distanciamento e à frieza na relação entre fabricação e uso. A era dos mercados de massa, impulsionada por novos meios de transporte e comunicação, alcançaria níveis sem precedentes de afastamento e distorção.

Como retratado no recente documentário produzido pela TV espanhola “Comprar, tirar, comprar” (“Comprar, jogar fora, comprar”), em meados do século XX representantes de grandes corporações industriais se reuniram secretamente para estabelecer que seus produtos deveriam durar menos tempo. Ou seja, frente à necessidade visceral das corporações continuarem crescendo ano após ano, seus dirigentes simplesmente decidiram a portas fechadas que os consumidores teriam acesso a produtos menos duráveis, que precisariam ser substituídos em prazos menores! O documentário dá um exemplo emblemático: uma estação de bombeiros norte-americana onde se encontra uma lâmpada incandescente, que recentemente completou cem anos de idade, e ainda está em funcionamento. Nos dias de hoje, as lâmpadas são deliberadamente fabricadas para durar um número limitado de horas de uso. Ou seja, nenhuma lâmpada fabricada hoje vai durar cem anos. E isso não é coincidência: é “planejamento estratégico”, no jargão corporativo.

O mesmo acontece com impressoras, meias-calças, automóveis, eletrodomésticos e muitos outros produtos. Essa é uma tendência intencional, chamada de obsolescência programada. Segundo essa perspectiva, qualquer produto só vale alguma coisa para o fabricante até o instante em que é vendido. A partir do momento que está em posse do consumidor, quanto antes for descartado melhor. Em outras palavras, qualquer produto vendido já é considerado lixo. Essa visão se perpetua nos dois lados do processo produtivo: tanto através dos gerentes que se sobrepõem à mão de obra industrial, condicionando seu trabalho à continuada necessidade de aumentar o faturamento e a lucratividade, produzindo coisas que duram menos tempo; quanto nos departamentos de marketing, que se esforçam em condicionar o comportamento dos consumidores para que continuem comprando produtos novos, mesmo que não precisem deles. Existem setores da administração de empresas especializados em simular relacionamentos prolongados com seus clientes, que são vistos não mais como compradores de produtos (e menos ainda como pessoas), mas sim fontes de faturamento para toda a vida.

É importante perceber o peso desses mediadores. Um engenheiro competente e bem intencionado que queira desenhar um produto mais durável ou que permita o reuso será provavelmente demovido por seus colegas e chefia. Se insistir, a empresa pode até considerá-lo uma espécie de traidor, por conta de uma alegada necessidade de competir pelo desenvolvimento de produtos que durem menos e proporcionem maior lucro, a fim de “não perder espaço para a concorrência”. E o mais assustador é que nesses ambientes isso é tratado quase como uma verdade universal. As escolas de negócios fazem uma lavagem cerebral, repetindo frases feitas com o objetivo de desumanizar ainda mais a produção e comercialização de bens e serviços.

Outro elemento importante a perceber: as empresas em geral se utilizam de linguagem bélica para descrever suas atividades: “público-alvo”, “derrotar os oponentes”, “conquistar”, “dominar”. Não é por acaso. Guerra e comércio estão conectados há muito tempo. A produção industrial, e com ela o poder corporativo, está ligada profundamente à manutenção das estruturas de poder na sociedade. O premiado documentário britânico “Máquinas de Felicidade” (The Century of the Self) mostra como técnicas oriundas da psicologia foram utilizadas desde o começo do século XX para forjar uma sociedade individualista e politicamente frágil, lançando mão do hábito do consumo como indulgência acessível a todos. Isso vai muito além da produção e do comércio, infantiliza a população, e tem reflexos profundos na relação das pessoas com as tecnologias que adquirem.

A quem pertencem os objetos?

Quando pagamos por um produto, acreditamos poder fazer o que quisermos com ele. Isso deveria incluir todos os usos previstos pelo fabricante, além de todos os outros usos que quiséssemos propor. Nas condições atuais, pode não ser bem assim. Particularmente em relação a eletrônicos, existe uma série de restrições legais sobre como podemos utilizá-los. São cada vez mais frequentes os casos de fabricantes que penalizam os usuários que promovem o desvio de funções de seus aparelhos. Um exemplo: a Sony ameaçou judicialmente entusiastas por desenvolverem software que habilitava o robô Aibo a dançar. Em outras palavras: a empresa proibiu usuários – que, diga-se de passagem, pagaram caro pelos equipamentos que compraram - de fazerem usos que ela própria não consegue oferecer. Por mera compulsão de controle, ela interfere em um aspecto fundamental para a promoção da inovação e seu potencial de transformação social: a chamada indeterminação do objeto técnico, ideia bem desenvolvida pelo francês Gilbert de Simondon (cujos textos vêm sendo traduzidos ao português e disponibilizados na internet por Thiago Novaes).

Esse vício de controle não se limita ao software. Existem também crescentes restrições ao armazenamento e circulação de conteúdo. Por exemplo, se você comprar um CD de música e fizer uma cópia de segurança para manter as músicas caso o CD se extravie ou seja furtado, estará incorrendo em crime. Mesmo que não tenha a intenção de distribuir para outras pessoas, a indústria fonográfica impõe uma legislação que trata a todos como criminosos. A Fundação Software Livre mantém uma campanha chamada “Deliberadamente defeituosos”, através da qual critica os aparelhos eletrônicos que adotam sistemas de gerenciamento de direitos autorais. Afirma que esses equipamentos já são projetados de maneira a retirar liberdades de seus usuários, o que tem consequências negativas para o conhecimento humano em geral.

O autor de literatura ciberpunk William Gibson diz que “a rua encontra seus próprios usos para as coisas”. Isso é uma característica de todo e qualquer objeto, ainda mais presente em se tratando de ferramentas com múltiplos usos potenciais como computadores, roteadores, telefones, tablets e afins. Com um pouco de habilidade técnica, uma boa pesquisa na internet e muita vontade, um monitor LCD pode virar um projetor, uma impressora matricial se transformar em instrumento de música, uma webcam servir de base para um microscópio digital, um celular ser usado como leitor de código de barras. Nesse sentido, restrições à liberdade de uso tendem a frear o impulso criativo. Grupos de pessoas motivadas e com liberdade de experimentar são uma das bases da inovação. Se não fossem os amadores promovendo o desvio de função dos kits de eletrônica nos anos setenta, talvez o computador pessoal nunca tivesse sido inventado. Precisamos garantir que essa liberdade continue existindo.

Apropriação crítica e bricotecnologia

Ao longo do tempo e dos diversos projetos desenvolvidos pela rede MetaReciclagem, trabalhamos sempre entre dois extremos: de um lado a adoção rápida de novas tecnologias e das novas possibilidades que elas trazem, do outro a crítica ao consumismo superficial. A busca do equilíbrio parece estar no que costumamos chamar de apropriação crítica das tecnologias. Ela toma forma na aproximação entre produção e uso de conhecimento aplicado que tem emergido internacionalmente. O software livre é um exemplo, estimulando ciclos econômicos que em vez de operarem em função da escassez optam pela abundância e pela generosidade. A chamada cena maker é um exemplo ainda mais concreto: pessoas no mundo inteiro fazendo uso de conhecimento compartilhado em rede para criar objetos e dispositivos interconectados. Disso saem ideias para aparelhos que realizam praticamente qualquer coisa: estações de monitoramento ambiental, objetos fabricados em impressoras 3D, protótipos de aparelhos focados nas necessidades de pequenos grupos de pessoas. Eu tenho chamado isso de bricotecnologia – a revalorização do saber-fazer, aplicado às tecnologias de informação e operando em rede.

A apropriação crítica passa pela valorização da inovação cotidiana, representada pela prática popular da gambiarra. Símbolo do impulso criativo orientado à solução de problemas concretos mesmo sem acesso ao conhecimento, ferramentas ou materiais adequados, a gambiarra torna-se ainda mais importante em uma época de crise econômica global, iminente colapso ambiental e consumismo exacerbado. Baseia-se na manipulação (entendida como o ato pegar com as mãos e interferir nos objetos) e na experimentação (sequência de tentativas, erros e novas tentativas). Dá origem a uma criatividade desobediente, que não se assusta com a precariedade e sempre vê o mundo como lotado de potencialidades - uma verdadeira lição que as culturas populares brasileiras têm a dar em tempos de crise econômica, colapso ambiental e disparidade social.

Quando em contato com as inúmeras possibilidades das tecnologias de comunicação em rede, em especial aquelas ligadas ao software livre, temos um potencial de transformação gigantesco. Indivíduos que tenham a gambiarra como habilidade essencial, e se utilizem do conhecimento aberto disponível em rede para adquirir ideias e técnicas, podem ser vistos como inventores em potencial de novos arranjos criativos, espalhados por todas as classes sociais e localidades.

A apropriação crítica supõe o amadorismo – que vem do latim amare, referindo-se às pessoas que se dedicam a um ofício mais por paixão do que por necessidade objetiva. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, os amadores estão em geral mais abertos à inovação. Justamente por não terem o domínio completo da técnica estabelecida e por não ocuparem posição nas hierarquias profissionais, têm mais espaço para o desvio e a transformação. Têm a possibilidade de questionar certezas e imposições, e com isso descobrir melhores maneiras de fazer as coisas.

Outro traço característico das culturas populares que faz muito sentido para a apropriação crítica de tecnologias de comunicação é o mutirão – agrupamento dinâmico que se forma para cumprir tarefas coletivas e em seguida se desfaz. O mutirão possibilita a efetiva cooperação entre pessoas e grupos, aumentando sua capacidade individual e promovendo uma sociabilidade livre e produtiva. As redes sociais online dialogam muito bem com a lógica do mutirão, promovendo laços de contato entre pessoas que não têm um convívio cotidiano. É natural que a abertura a novos contatos estimule a criatividade, de modo que estimular iniciativas dinâmicas em rede é mais uma forma de potencializá-la.

A bricotecnologia e a apropriação crítica sugerem a reconciliação entre manufatura e necessidades cotidianas, libertando a fabricação da exigência de escala. Gabriel Menotti propôs, no artigo “Gambiarra: The Prototyping Perspective” (artigo cuja tradução para português deve sair na compilação sobre “Gambiologia” do MutGamb, uma edição que ironicamente está há dois anos aguardando finalização), a análise do contraste entre a gambiarra e o protótipo. Se esta indica uma fase prévia à fabricação propriamente dita, aquela dissolve a fronteira entre esses dois estados e se coloca como solução intermediária: servindo ao uso ao mesmo tempo em que se mantém aberta para reinvenção. Uma vez que as ferramentas e materiais necessários para fabricar objetos estão se tornando cada vez mais acessíveis, é importante desenvolver as habilidades técnicas e a criatividade que podem fazer uso desses recursos, e assegurar que apontem a ciclos de inovação baseados em conhecimento livre. A apropriação crítica, a bricolagem, a gambiarra e o mutirão são elementos fundamentais dessa equação.


Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo para a plataforma Arquivo Vivo.

Pós-digital

Há alguns meses lancei Laboratórios do pós-digital, uma compilação de artigos escritos desde 2009 até o começo deste ano. A expressão "pós-digital" só surgiu depois que o livro já estava quase pronto. Ou seja, o título faz menção a uma construção que não aparece ali dentro, pelo menos não articulada dessa forma. Quero tentar desfiar aqui algumas pontas disso.

O pós-digital é menos um conceito em si do que uma posição de questionamento. Não se trata de negar o digital. Pelo contrário, quero aprofundar um pouco a reflexão sobre a própria ideia de desaparecimento do digital como consequência de sua ubiquidade. A partir do momento em que o digital está em toda parte, será que ele ainda funciona como um recorte relevante para entender e interferir na maneira como as redes interconectadas influem na sociedade? Novas tecnologias estão sendo desenvolvidas a todo instante. Podemos querer que elas apontem para um futuro mais aberto, participativo e justo. Acredito que a melhor maneira de fazer isso seja parar de falar sobre "o digital" como algo em si.

O discurso do digital foi assimilado por praticamente todos os setores da sociedade. Isso toma por vezes uma forma equivocada, à medida em que se tenta de maneira fetichista opor o digital a um supostamente ultrapassado "analógico". Ao contrário do que se pode pensar, o analógico está presente em praticamente tudo aquilo que alguns tentam chamar de "revolução digital". Exemplos simples de operações analógicas são o movimento do mouse, as metáforas visuais da interface de usuário dos computadores e celulares contemporâneos, o modo como as redes sociais simulam e ampliam a maneira como nos comunicamos pessoalmente. Os scanners, impressoras, microfones e caixas de som são dispositivos que propiciam a conversão de informação digital em comunicação analógica e vice-versa.

Fenômenos mais recentes como as aplicações móveis, locativas e de realidade expandida adicionam ainda novas camadas nessa composição. Pode-se dizer que a maior parte dos usos que as pessoas fazem das tecnologias digitais são usos analógicos. Daí que boa parte da construção do imaginário do digital já começa equivocada, por apostar em uma oposição que não existe.

Ainda assim, aquilo que usualmente se define como digital costuma se referir às implicações de uma série de transformações efetivas: a digitalização de comunicações, cultura e entretenimento; a emergência de redes auto-organizadas que possibilitam a coordenação negociada entre pares e grupos, e gradualmente transformam relações de poder e de criação de valor; e os crescentes barateamento, portabilidade e aumento de poder de processamento dos dispositivos que dão acesso a essas redes. Pensar o digital como uma categoria específica proporcionou a potencialização de ativismo online, de projetos e metodologias colaborativas e de novas ou renovadas maneiras de trabalhar. Ao mesmo tempo, possibilitou o desenvolvimento de iniciativas afirmativas que buscam equilibrar a adoção das novas tecnologias de comunicação e das oportunidades que trazem - por exemplo naquilo que é chamado de inclusão digital.

Por outro lado, o entendimento do digital como um tema em si pode levar a uma série de distorções. À medida em que se isola o digital como uma nova realidade, os problemas que ele ocasiona passam a ser entendidos como ocorrências pontuais. E não o são. A precarização do trabalho em arranjos cada vez mais instáveis e dependentes; a profunda alienação a respeito do impacto ambiental da vida contemporânea, em especial como decorrência da produção e do descarte de eletrônicos; o surgimento de uma economia “digital” que é excludente, elitista, individualista, consumista e que não respeita a privacidade explícita ou implícita de seus usuários; as novas disputas sobre direito autoral e remuneração de criadorxs - são parte de um complexo sistema político e econômico global, e não podem ser analisadas de maneira isolada.

Se queremos moldar nossos futuros coletivos, precisamos entender que o acesso não é o maior problema. Precisamos parar de pensar em ferramentas, e voltar a ousar. Precisamos que as ideias voltem a ser perigosas. Precisamos investir em assuntos de fronteira, e experimentar para entender suas implicações éticas, estéticas, políticas e administrativas. Eu sustento que hoje em dia precisamos incorporar o digital como dimensão indissociável da nossa existência. Por isso pensar o pós-digital, entremeando o digital em todo o resto e assim esquecendo dele como instância isolada.

Nesse sentido, eu venho tentando explorar alguns temas latentes, na encruzilhada entre cultura, arte, ciência, economia, educação e sociedade. Alguns exemplos são a internet das coisas, o hardware livre, a fabricação digital doméstica, o design aberto, a geografia experimental, as cidades inteligentes, a realidade expandida, as mídias locativas, as aplicações móveis, a ciência comunitária, os hackerspaces e fablabs, e diversos outros temas nessa linha. São todos temas que tratam essencialmente do digital, mas propõem alguns passos adiante. De maneira quase arbitrária, escolhi agrupá-los ao redor de três eixos: laboratórios enredados, bricotecnologia e eversão.

Labs e Experimentação

Rede//Labs é uma plataforma criada em 2010 para promover a articulação entre diferentes iniciativas ligadas a medialabs e laboratórios experimentais do Brasil e do exterior. Realizamos um levantamento, elaboramos um edital que seria lançado pelo Ministério da Cultura (mas perdemos o timing do ano eleitoral), e organizamos um encontro nacional e um painel internacional durante o segundo Fórum da Cultura Digital, na Cinemateca Brasileira (São Paulo/SP).

O levantamento partiu de um questionamento simples, mas legítimo: se, por quê e como deveriam ser desenvolvidos hipotéticos laboratórios experimentais de tecnologias no Brasil dos dias de hoje. Dias em que - com toda a precariedade e instabilidade - o acesso a equipamentos e conectividade é muito maior do que quando os primeiros medialabs estadunidenses e europeus se estabeleceram, no fim do século passado. Dias em que o Brasil alcança alguma projeção internacional e pode assumir um papel importante, em especial no uso e suporte a tecnologias livres e abertas.

O levantamento indicou que laboratórios são de fato desejáveis - menos por uma suposta carência de acesso a tecnologias do que pela necessidade de socialização para dinamizar a criatividade aplicada nelas. Ou seja, o mais importante é que os labs possibilitem a troca de conhecimento e oportunidades, fomentem o aprendizado distribuído e incentivem a descoberta, e mesmo o erro, como parte fundamental do processo.

Uma política de labs deve estar baseada na disponibilização de metodologias, materiais e produtos com licenças livres. Deve buscar o desenvolvimento de economias baseadas na abundância e na generosidade do conhecimento livre. Deve incentivar a circulação e o enredamento, e buscar maneiras de financiar a criatividade aplicada que se alimenta da experimentação. Deve, como falei em outro artigo, fazer o amanhã pensando o depois de amanhã.

Bricotech

Nos dias de hoje, comunicar-se em rede é natural. Avós octogenárias estão em redes sociais, senadores contratam profissionais que alimentam seus microblogs (quando não publicam eles mesmos), microempresários precisam gerenciar conta de email, site institucional, blog, loja virtual, perfil no facebook, conta no twitter e por aí vai. É fácil esquecer que, mais do que usar, podemos também nos apropriar das tecnologias de forma mais profunda e crítica. Por mais que a indústria (em especial aquela parte dela que tenta transformar a internet em um jardim cercado) nos queira a todos como meros usuários consumidores de conteúdo, as partes que compõem as tecnologias de comunicação estão aí, disponíveis para reconfigurações, interpretações alternativas, desvios e inovações.

Existe um traço comum entre a cena maker, a gambiologia, o DIY (faça-você-mesmo) e seu desdobramento no DIWO (faça com outras pessoas). Um traço comum entre as ações que se desenvolvem em hackerspaces, o open design, a ciência de garagem e comunitária, o biotecnologia amadora, os projetos de hardware livre e as possibilidades (ainda não exploradas a fundo) do shanzhai. Entre a fabricação digital, a MetaReciclagem e o upcycling. Trata-se do impulso de manipular, de tomar nas mãos o conhecimento tecnológico, e utilizá-lo como instrumento para estar no mundo. É um posicionamento situado, político em sua vontade de transformação, e que tem o potencial de proporcionar uma era de invenção socialmente relevante. Eu tenho chamado essas coisas de bricotecnologia - precisamente o ponto de contato entre a sensibilidade das mãos que sabem modificar a realidade e as mentes conectadas em rede.

Evertendo

Apontei em um post recente a referência do verbo "everter", pescado em um livro de William Gibson - autor cyberpunk, criador da própria ideia de ciberespaço. O sentido que ele tenta dar ao termo "eversão" é de surgimento de pontas do ciberespaço no "mundo real" - uma situação na qual se tornaria impossível precisar as fronteiras entre o que está no plano físico e o que está na rede. Desde os primórdios do Projeto Metá:Fora, precursor da rede MetaReciclagem, a gente já falava sobre a dificuldade de definir o que é online ou offline. Hoje em dia isso é ainda mais complexo. As redes de fato evertem. Mas que redes são essas?

A internet foi criada como uma forma de interconectar computadores de maneira distribuída, a partir de protocolos abertos e livremente replicáveis. Nos dias de hoje, estamos na iminência do surgimento de outra sorte de interconexão: milhões de dispositivos diferentes (sensores, atuadores, câmeras) estão incorporando a possibilidade de comunicação em rede.

Projetos de cidades do futuro preveem a disponibilização em tempo real de informação relevante: itinerários e horários de transporte público, gerenciamento de semáforos, dados sobre consumo de energia, sensores climáticos e afins. Sistemas de automação doméstica, com monitoramento remoto de interruptores, eletrodomésticos e portas, também se tornam acessíveis. Plataformas como o Pachube facilitam a agregação e circulação de dados gerados por esses sistemas. Aplicações locativas móveis que cruzam as redes com a malha geográfica, jogos de realidade expandida, novas maneiras de interagir com a informação - com telas touchscreen, movimentos, gestos. São pontos de contato entre o local e o remoto, que transformam completamente a nossa relação com o online.

Isso tudo pode levar ao surgimento do que está sendo chamado de internet das coisas. Mas a tendência centralizadora da indústria vem interferindo na maneira como se desenvolvem essas tecnologias, o que aponta muito mais na direção de uma coleção de intranets das coisas - espaços restritos e opacos, nos quais ninguém sabe muito bem como as coisas funcionam. Rob van Kranenburg vem tentando contrapor à badalada IOT (internet das coisas) uma proposta de IOP (internet das pessoas), que não parta do princípio da fria interconexão de objetos, e sim da compreensão de que o mais importante da rede é facilitar e otimizar a sociabilidade humana.

Como desenhar protocolos abertos e distribuídos que garantam que essas redes sejam realmente participativas e inclusivas desde o princípio, blindadas contra interferências governamentais, corporativas e golpistas? Mais uma vez, insisto: precisamos dar menos atenção a "páginas", "conteúdo" e "acesso"; e nos concentrar mais no papel que a comunicação em rede pode efetivamente assumir na vida das pessoas. Esquecer por um instante o digital, e lembrar por que é mesmo que queremos fazer o que estamos tentando fazer.

Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo para a Plataforma Arquivo Vivo.

Boca do lixo

Essa peça foi feita para o SIREE, encontro sobre resíduos solidos no Recife, do qual o Lixo Eletrônico participou. O bichinho questiona as brechas legais do descarte de eletrônicos no Brasil. Foi feito com a mais pura gambiarra, varal de parede pra erguer as pernas, restos de celulares usados e brinquedos velhos, quase tudo de descarte - menos as 2 tvzinhas que exibiam o olho e a boca falando.

Fiz tudo no ubuntu, filmes e sintetizador de voz pro bicho ficar com voz de robô. Foi sucesso lá. Tem também fotos no meu flickr.

 

Lift 10 - Documentação gráfica

Uma das coisas interessantes da Lift foi a documentação gráfica: uma equipe transformava os assuntos mais importantes de cada apresentação em um infográfico, que era depois exibido em um mural. Abaixo o que fizeram pra minha palestra, e mais um monte aqui.

Documentação Gráfica

Rolê, parte 1 - velhomundo continental

Durante algumas semanas desse mês, fiz um rolê por alguns lugares da Europa, participando de eventos e conhecendo pessoas. Esse post é a primeira parte de uma tentativa de documentação com base em anotações, tweets e lembranças.

Genebra - Lift10

Meu primeiro destino foi Genebra, onde se realizaria a conferência Lift 10. Eu fui convidado a falar sobre MetaReciclagem e Brasil. Algumas semanas antes, um dos organizadores me mandou alguns vídeos com exemplos de palestras que foram bem recebidas em edições anteriores. Eram palestras de altíssimo nível, tanto que chegaram a me intimidar. Isso acabou me distraindo um pouco da conferência - fiquei bastante tempo andando pela cidade e elaborando ideias, ou no quarto escrevendo e reescrevendo.

FrioAndar por Genebra é uma experiência singular. Um ar romântico e algo literário - impossível não procurar o Outro Borges espreitando em algum banco de praça, debaixo do frio inesperado para uma primavera. Além disso, a presença de todas as instituições internacionais em torno da ONU - e das delegações do mundo inteiro que vão para lá pleitear, debater, influenciar - evoca uma certa sensação de fronteira. Mas é uma fronteira mundial, uma fronteira de todas as nações, que parece atrair a presença de muitxs feiticeirxs. A tudo isso se junta a coisa mais fria do dinheiro puro - muitos bancos, muitas lojas de grife, muita gente que cultua essas coisas. >>Leia mais