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Os Mendi e a gambiologia

Traços de Gambiologia em Sahlins: "O 'pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um 'objeto' em via de extinção".

Os Mendi fazem até jóias a partir do lixo europeu. Quando Lederman e seu marido, Mike Merrill, iniciaram seu projeto de pesquisa, eles - compreende-se bem por quê - lamentaram a indigência dos Mendi, ao invés de saudar sua criatividade. Que outra conclusão se poderia tirar de um povo que fabricava pulseiras a partir de latas de conserva e chapéus a partir de embalagens de pão? De gente que, após haver passado toda a sua vida descalça, agora andava com galochas larguíssimas, ou às vezes com um pé só de uma galocha rasgada? De um povo que comprava rádios caros que, entretanto, logo quebravam e não tinham como ser consertados? Merrill, um especialista em história do trabalho, concluiu que, embora essa apropriação do refugo da "civilização" não possuísse nenhum significado funcional, ela devia significar algo ¾ provavelmente um sentimento de privação afrontosa. "Um pé de sapato", escreveu ele em seu diário, "não tem utilidade, e provavelmente até dificulta o andar (sobretudo se está sem o salto... ). Mas um pé de sapato significa alguma coisa. Significa um desejo, por parte do dono, de ter um par de sapatos; e de ter não apenas sapatos, mas tudo o mais também" (Lederman 1986a:7). Eis que, por falta de um pé de sapato, a cultura se perdeu. Utilizando uma antropologia do ancien régime, a velha lógica funcionalista da correspondência necessária entre um tipo de tecnologia e a totalidade cultural, os etnógrafos se convenceram inicialmente de que os desejos dos Mendi por objetos estrangeiros iriam necessariamente atrelá-los aos significados e relações portados por essas mercadorias, a ponto de comprometer suas formas tradicionais de existência:

"Pois machados de aço, tecidos industrializados, carros, serviços de mesa, arroz e peixe enlatado, pregos etc. não são objetos neutros [...]. Quando penetram na área, carregam de maneira visível e influente suas origens sociais [...]. Os valores do mercado mundial acabam necessariamente predominando [...]. Ao fim e ao cabo, a estrutura social tradicional será erodida pela ação corrosiva dos artigos que agora são usados de modo tradicional, mas que já contêm dentro de si outras e mais poderosas intenções" (Lederman 1986a:7).

Não obstante, até o início dos anos 80, após toda uma geração de experiência com o governo colonial e pós-colonial, e após uma experiência considerável com o mercado através da venda tanto de produtos como de mão-de-obra, tal erosão ainda não havia acontecido. Nem as mercadorias nem as relações envolvidas em sua aquisição haviam transformado as estruturas mendi de sociabilidade ou suas concepções de uma existência humana adequada ¾ a não ser no sentido de as intensificar. Abastecidos de uma maior riqueza em dinheiro, conchas de madrepérola, porcos e bens estrangeiros, os cerimoniais clânicos e as trocas entre parentes atingiram dimensões inéditas, tanto em termos de escala como de freqüência (Lederman 1985; 1986b:153). Os Mendi possuem agora cerimônias maiores e mais parentes do que jamais tiveram. Lederman observou que as relações sociais indígenas haviam gerado uma demanda de moeda moderna bem maior que aquela exigida pelas instâncias locais do mercado capitalista (1986b:232). Refletindo acerca da disposição dos brancos para o consumo privado, um amigo Mendi caracterizou a economia européia como um "sistema de subsistência", em contraposição ao interesse de seu próprio povo em dar e receber, e que seria, este sim, um verdadeiro sistema de trocas (1986b:236). Por essa não se esperava...13

Os Mendi, escreve Lederman, interagiam com os estrangeiros "sem perder o sentido de si mesmos" (1986b:9). O sistema cultural local "ainda é a estrutura dentro da qual os Mendi definem, categorizam e orquestram os novos objetos e modos de agir que lhes foram apresentados durante a última geração" (1986b:227). Mas observe-se que invocar desse modo uma estrutura ou lógica culturais, como sendo aquilo que orquestra a transformação histórica, não é o mesmo que falar de uma reprodução estereotipada do costume tradicional. A tradição consiste aqui nos modos distintos como se dá a transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente. Nas terras altas da Nova Guiné, isso pode significar um desenvolvimento da competição cerimonial interclânica, ocorrendo concomitantemente ao declínio da guerra. Mas a competição pode se manifestar também em projetos de construção de igrejas (1986b:230)14.