Blog de efeefe

Website arquivado

Este website parou de ser atualizado no fim de 2015. Em agosto de 2016, efeefe decidiu arquivá-lo.

Para assuntos relacionados ao Desvio, dê uma olhada nestes outros sites também:

Oslodum

Meu texto em inglês sobre gambiarra e cultura maker foi publicado novamente, agora na Tvergastein, baseada em um centro de pesquisa ligado à Universidade de Oslo. Esta edição da publicação tinha por tema "Leaving the box - Entrepreneurship, Innovation and Initiatives". Para quem me lê em português via internet meu papo já está manjado, mas para quem quiser dar uma olhada nos outros textos da publicação pode checar aqui ou esperar que uma cópia impressa vai aparecer no Ubalab nas próximas semanas.

Cultura do conserto

Publiquei nesta semana uma versão rápida (somente com o texto-base em inglês e sem imagens) da compilação que estou montando sobre meu período como residente na VCUQatar ano passado. O material já publicado está disponível em versão para o kindle (bem baratinho, leva aí) ou livre e grátis no meu site. Aproveitei para também fazer minha primeira experiência com o medium e publiquei lá um trecho do texto principal.

Meio-relato: residência na VCUQatar, em Doha

Como já relatei anteriormente aqui neste blog, passei em novembro de 2014 duas semanas em Doha, capital do Catar. Fui a convite do mestrado em design da VCUQatar, no papel de designer residente. O tema da minha residência era "repair culture".

Desde que retornei do Qatar, estou rabiscando um relato de viagem. Daqueles relatos longos e detalhados que eu costumo fazer (como este ou este). Mas não saiu. Pode ser a falta de chuvas, pode ser o tempo curto em meio a um monte de tarefas profissionais, voluntárias e episódios novos na vida. Ou pode ser o fato de que eu ainda nem decidi se escrevo Catar ou Qatar. Mas por enquanto vou deixar de lado o relato mais longo, e publico aqui somente alguns apontamentos.

Doha me impressionou menos pelas diferenças do que pelas semelhanças com um certo estilo de vida brasileiro e em especial paulistano. Meus anfitriões na universidade, ambos europeus, chegaram a me perguntar o que eu tinha achado do tratamento VIP que recebi em Doha - hotel, refeições, motorista, ar condicionado. Fiquei algo constrangido de admitir que, ainda que inconfortável, não tinha estranhado aquela situação tanto quanto eles. Além disso, a cidade avessa a pedestres, os shopping centers, a cafonice dos prédios brilhantes que mudam de cor e o consumismo e ostentação, tão risíveis quanto previsíveis, também cheiram muito à capital paulistana. Como se Doha fosse um retrato do que São Paulo pode se tornar se uma série de decisões erradas continuarem a ser tomadas. Mas a pior piada que surgiu foi que, já naquela época, a deserta Doha tinha mais acesso a água do que a São Paulo que um dia foi recortada por rios.

Existem inúmeras peculiaridades sobre o Catar que podem ser encontradas na wikipedia. Certamente despontam algumas diferenças em relação a outros países da região. As quase duas décadas de reinado do Emir Hamad Al Thani (e de igual ou possivelmente maior importância, de sua esposa Mozah) fizeram o país se diferenciar na região. O Catar hoje tem o trigésimo primeiro IDH no mundo (o maior do mundo árabe). Mulheres podem estudar (e vou falar mais sobre isso em seguida). A instituição cultural do Qatar tem o segundo maior orçamento de cultura no mundo (ok, quase totalmente gasto com ostentação, mas ainda assim uma posição notável). O país criou e sustenta a Al-Jazeera, que eu passei a assistir quando estava por lá e me impressionou por tratar de maneira abrangente temas difíceis. Os habitantes do país não pagam impostos, e os cidadãos locais têm educação e saúde de graça. É claro que, aqui, surge uma questão importante. Os cidadãos são uma minoria - cerca de trezentos mil num universo que beira os dois milhões de habitantes. Nem, de um lado, os executivos ou trabalhadores do conhecimento ocidentais, nem de outro os trabalhadores braçais, de comércio e serviços do sudeste asiático e outros países árabes, costumam ter o direito de naturalizar-se. Existe um regime de classes bastante marcado em Doha. Um motorista de Bangladesh, por exemplo, provavelmente não seria admitido em um pubs dos hoteis internacionais para bebericar uma cerveja que é proibida em qualquer outro estabelecimento do país. Eu gostaria de afirmar que situações idênticas não acontecem em São Paulo, mas não tenho tanta certeza assim.

A universidade, que fica dentro da Education City de Doha, era um mundo à parte. Fui muito bem recebido pelos professores Thomas Modeen e Marco Bruno. Trabalhei com um grupo de dez estudantes dos dois anos do mestrado. Eram oito meninas e dois garotos. De dez nacionalidades distintas, mas ninguém do Catar. Egito, Barein, Kuwait, França, Palestina, Estados Unidos, Canadá, Bangladesh, Paquistão e Sudão. Grande parte daquela turma não teria oportunidades de estudar em seus próprios países. Com uma única exceção, o restante era de muçulmanos. Todo mundo muito criativo, competente e bem preparado. Boa parte deles vinha da arquitetura ou design de moda. A faculdade tem todo tipo de laboratório - de fotografia, vídeo, fabricação digital, joalheria, um repositório de materiais, e por aí vai. E a biblioteca é deliciosa.

Meu período de residência começou com algumas conversas sobre lixo, descarte e reuso. O pessoal já tinha uma boa noção das questões críticas nessas áreas, mas nunca tinha sido uma prioridade para eles pensar nesses temas. Exibi e conversamos sobre alguns vídeos - ilha das flores, obsolescência programada, lixo extraordinário, digital handcraft.

Debatemos um pouco sobre uma questão que me parece essencial. Segue abaixo um rascunho do que deve voltar em breve como um texto à parte.

A tal "cultura maker" surgiu, ao menos em parte, em cenários que costumavam apontar para o reuso e o conserto como fundamentais para garantir futuros mais sustentáveis. Mas hoje em dia parece que tudo isso foi deixado de lado e que todo esse universo de hype está voltado para criar protótipos - feitos de plástico derretido de difícil reciclagem - de novos produtos. Como se o mundo já não tivesse objetos fabricados em demasia!

A mim, parece absurdo que as tecnologias de fabricação digital não estejam fundamentalmente voltadas para se pensar maneiras de continuar usando objetos que já estão por aí. Me parece inadequado e falso enquadrá-las na referência de uma "nova era industrial". A era industrial trouxe, é certo, avanços importantíssimos para a humanidade. Mas gerou também alienação, desigualdade e impacto ambiental profundos. Chega de dar sobrevida à era industrial - precisamos de outros modelos de produção e distribuição. O crescimento do interesse da opinião pública por alimentação orgânica, tratamento de lixo, habilidades manuais e afins me parecem ser o contrabalanço dessa tendência, e precisamos ter isso em mente.

Enfim, tivemos a oportunidade de debater estas questões (e o fato de eu conseguir resumi-las em dois parágrafos é um dos maiores frutos da minha residência na VCUQ), e decidimos as ações para as duas semanas que eu ficaria por lá. Em primeiro lugar, visitaríamos alguns artesãos que ainda produzem coisas com as próprias mãos - marceneiros, alfaiates, tapeceiros, etc. A ideia era conversar sobre seu ofício, habilidades, ferramentas, formação e afins. Faríamos o mesmo com pessoas que consertavam coisas - principalmente sapateiros e relojoeiros. Também planejamos saídas a um cemitério de pneus e um cemitério de automóveis, ambos no meio do deserto.

A pesquisa de campo deu muitos resultados. O único senão foi o cemitério de automóveis, que só pudemos ver do lado de fora porque chegamos depois do horário de visitações. Mas de resto, fizemos excelentes entrevistas, conversas e imagens.

Outra atividade que nos propusemos a desenvolver foi um Repair Cafe dentro da VCUQ. Em uma sociedade de alto poder aquisitivo e praticamente sem nenhuma preocupação com o descarte apropriado de objetos sem uso, pareceu-nos interessante desenvolver um encontro voltado ao conserto e ao reuso. Tivemos dois dias - um para receber os materiais e outro para explorar possibilidades com eles. Trabalhamos também com objetos encontrados no cemitério de pneus. Saímos com uma série de objetos reaproveitados, e mais do que isso com algumas indicações de como organizar uma metodologia colaborativa voltada ao conserto de coisas.

Os últimos dias foram dedicados a organizar a documentação de meu período por lá, que resultou em uma publicação digital. Tenho ainda que rever meu texto de introdução, que ainda não está perfeito, e em breve vou agitar para fechar essa publicação. Assim que rolar, publico por aqui.

De resto, faltam todos os meus apontamentos culturais e do cotidiano do Catar. Esses eu deixo para contar pessoalmente, talvez ao aroma do café turco que trouxe de lá. Mas voltei satisfeito de ter tocado uma série de questões importantes e de ter conhecido bastante gente interessante e que ainda vai fazer muita coisa pelo mundo afora.

E ainda reencontrei na sincronicidade uma amiga que não via fazia tempo, vi o sol descer nas dunas, tomei café numa tenda árabe no deserto. Fui ao shopping, ao supermercado, ao mercado central. Nos fones de ouvido estiveram principalmente a trilha sonora de Código 46 e o Ghost World do Dj Spooky. Ah, e tenho muito mais fotos no flickr.

P.S.: publiquei também mais algumas anotações junto a outro post no blog redelabs.

Me organizando posso desorganizar

Há alguns meses, encontrei o broda Oliver Schultz em um evento no centro de sampa. Ele me entregou alguns livros que saíram pelo postmedialab. Um deles era o Provocative Alloys, que contém uma conversa entre Oliver, Alejo Duque e eu na qual minha parte deve soar razoavelmente datada. A conversa aconteceu antes das manifestações de junho. Ali no meio havia, se bem lembro, alguns comentários meus sobre a inércia do engajamento político no Brasil em tempos de inclusão consumista. Infelizmente, o livro só saiu depois que os fatos haviam contradito esses comentários. Me enganei, e ainda não entendi se fico feliz por isso ou não.

Mas havia também outras publicações no meio. Nesta virada de ano tive a oportunidade de ler uma deles, o livro "Organisation of the organisationless: Collective action after networks", do professor da PUC-Rio Rodrigo Nunes. Confesso que não conhecia o trabalho de Nunes, e achei bem interessantes algumas contribuições que ele dá ao vocabulário das redes. Em primeiro lugar buscando formas intermediárias entre os extremos do indivíduo e da multidão. E também trabalhando questões que, percebi ao ler, eram de certa forma correntes nos tempos mais ativos da rede MetaReciclagem (que na minha opinião, como já falei na lista, já morreu mas anda por aí como um ancestral que permanece por perto pra dar umas dicas ou incomodar de vez em quando). Nunes trata da questão das lideranças distribuídas - afirmando que existe naturalmente um papel de lideranças mas também o potencial para o surgimento de novas lideranças. Na MetaReciclagem, chegamos algumas vezes a conversar também sobre a importância da autossabotagem consciente das lideranças - um tipo de bloqueio com a intenção de anular a inércia que frequentemente seguia-se aos processos de ascendência. Foi interessante ver alguns desses elementos estruturados no texto de Nunes.

Segue abaixo uma seleção de trechos que assinalei enquanto lia. Encontrei também um artigo de Nunes na Universidade Nômade que trata de alguns assuntos que estão na publicação.

To say that leadership exists in networks while absolute horizontality does not has nothing to do with the fantasy of ‘hidden leaders’ that functions, in the discourse of the media and the political class, as the underside of the fantasy of throngs of previously unrelated individuals magically coming together around a goal. (p.13)

The discussion ceases to be about how to achieve absolute horizontality, which will have been demonstrated to be impossible, or how to eliminate leadership, representation and closure, and becomes about how to negotiate them, what balances to strike between openness and closure, dispersion and unity, strategic action and process and so forth. (p.13)

Any description such as ‘Egyptian Revolution network-system’ or ‘Diren Gezi network-system’ is a reflection on the given network-system. That is, while they are obviously produced from within that network-system, and thus presuppose its existence, they exist at a second-order, reflexive level in which the network-system consciously apprehends itself. If the network-system is the ‘movement’ in-itself, this level is the ‘movement’ for-itself. We can call it the network-movement: the conscious, self-reflexive understanding held by some that the multiple elements and layers assembled in the network-system constitute an interacting system of actors, intentions, goals, actions, affects etc., however heterogeneous these may be. The network-movement is at once the act of self-recognition that takes place when people start talking about ‘the movement’ to refer to these heterogeneous elements, and the ensemble that they have in mind when they do so. (p. 25)

As such, the network-movement is a prerequisite for strategic and tactical thinking. Whereas ‘the movement’ inevitably implies some presupposition of a unity that is not given, ‘network-movement’ starts from a dynamic multiplicity – a dynamic system whose parts are also dynamic systems – and points towards the continuous project of the construction of commons, temporary or permanent, whose form is not presupposed in advance. The choice for either dispersion or unification is not inscribed in advance in the notion of a network-movement. On the contrary, the idea of network-movement opens the possibility that several ways of combining the two – swarming, distributed action, diversity of tactics, institutionalisation, forking, even (why not?) parties – can be selected according to what the occasion requires. Once these are considered in the context of a network-system, the point is not what solution is valid for the whole, but what solutions work within the whole. (p.29)

Leadership occurs as an event in those situations in which some initiatives manage to momentarily focus and structure collective action around a goal, a place or a kind of action. They may take several forms, at different scales and in different layers, from more to less ‘spontaneous’. This could be a crowd at a protest suddenly following a handful of people in a change of direction, a small group’s decision to camp attracting thousands of others, a newly created website attracting a lot of traffic and corporate media attention, and so forth. The most important characteristic of distributed leadership is precisely that these can, in principle, come from anywhere: not just anyone (a boost, no doubt, to activists’ egalitarian sensibilities) but literally anywhere. (p. 35)

Distributed leadership is therefore to be understood as the combination of a topological property (the presence of hubs) and two dynamic ones (hubs can increase and decrease, and new hubs can appear or, alternatively, nodes can ‘lead’ without necessarily becoming a hub or authority in the process). If the first of these entails that networks are constitutively unable to become the perfectly flat, totally transparent, absolutely horizontal media they are sometimes posited as at least potentially being, the latter two indicate the measure of democracy they can be said to have. Individual networks can of course be more or less democratic according to how distributed leadership potential is, and how open they are to new initiatives and hubs emerging. It is only if we understood ‘democracy’ as synonymous with ‘absolute horizontality’ that they could be called undemocratic. Horizontality, despite being an impossible goal to achieve, has its use as a regulative principle, indicating the need to cultivate the two dynamic properties of distributed leadership. (p.39)

Not everyone needs to back an initiative, although it requires support proportional to its aims; but what is backed is not a group or position that exists outside the strategic wager which the initiative embodies, but the wager itself. This amounts to occupying the vanguard-function, or being a vanguard, without vanguardism. (p. 43)

 

Chegando a Doha

Há alguns meses fui convidado a vir em novembro a Doha, capital do Catar, como designer residente junto ao curso de Mestrado em Design da VCU. O convite faz parte de uma série de ações de intercâmbio entre o Brasil e o Catar que estão sendo desenvolvidas ao longo deste ano. Vou ficar duas semanas trabalhando com um grupo de estudantes com questões de descarte, reuso, conserto e afins. Como já escrevi no começo da semana, espero durante estes dias trabalhar com a ideia de uma "cultura de conserto" como crítica à tal "cultura de fabricação" que vem na esteira dos makerspaces e das impressoras 3D.

Desenvolver isso no Catar está me parecendo apropriado, para minha surpresa. A chegada repentina do Petróleo por aqui criou uma sociedade de consumo que veio totalmente de cima para baixo. O país tem muito dinheiro: o maior ou segundo maior PIB per capita, o melhor IDH da região, o segundo maior investimento em arte do mundo. Por trás do investimento em arte e cultura, aliás, está uma organização chefiada uma princesa hoje com 31 anos de idade, que já falou sobre diversidade no TED. Mas todo esse dinheiro pode ter trazido de forma muito mais acelerada um processo que a gente já apontou no Brasil - a substituição da sabedoria do fazer, do consertar e do adaptar pelo mero consumo. Se uma coisa quebrou, eu compro outra.

Não sei se isso realmente acontece por aqui, mas essa é uma das coisas que vamos investigar durante os próximos dias. Quero crer que mesmo com o acesso a brinquedos mais caros, continua existindo o impulso de adaptar e fazer as coisas, como o cara da moto iluminada. Encontrei esse vídeo, aliás, quando pesquisava sobre o Gulf Futurism, uma provocação que não me parece bem resolvida mas mostra um pouco da tensão entre os grandes planos que acompanharam o gigantesco crescimento econômico e a vida das pessoas. Vou deixar para contar em outro post mais narrativo, mas já adianto que depois de dar umas voltas por aqui não paro de associar Doha com São Paulo. As duas cidades parecem ter muito em comum (para além da piada com a falta de chuvas, ok?), mas em velocidades muito diferentes.

Volto logo com as primeiras impressões.

Gambiarra studies

Nesta quinta embarco para o Catar para uma residência, a convite da VCUQatar. Vou passar duas semanas lá com um grupo de estudantes do mestrado em design da VCU, tratando de gambiarra. Para mim é uma oportunidade de articular minimamente o discurso da "cultura de conserto" que me parece uma crítica necessária à tal "cultura maker". Vamos ver o quanto dá pra avançar sobre isso.

Fabricação, conserto e "porque dá"

Raquel Rennó mandou pela rede social do capeta um bom artigo no Medium com o título "Yes we can. But should we?", que levanta uma visão um pouco mais crítica pra toda a coisa da "cultura maker". Traduzindo livremente um trecho:

Parece haver uma confusão conceitual sobre o que a impressão 3D possibilita ou não. Ela nos permite encantar uma criança de quatro anos criando praticamente do nada um mini Darth Vader? Sim, permite. Mas o objeto não se materializa do nada. Uma impressora 3D consome de cinquenta a cem vezes mais energia elétrica para fazer um objeto do que o processo de injeção de plástico moldado. Além disso, as emissões de uma impressora 3D de mesa são similares a queimar um cigarro ou cozinhar em um fogão a gás ou elétrico. E o material escolhido para todas essas novas coisas que estamos clamando por fazer é esmagadoramente o plástico. De certo modo, é um deslocamento ambiental para o lado inverso, contrapondo-se a leis recentes para reduzir o uso de plástico que banem sacolas plásticas e estimulam a reformulação de embalagens. Ao mesmo tempo em que mais pessoas levam sacolas de tecido para o supermercado, o plástico se acumula em outros campos, da Techshop à Target.

De fato, a moda corrente da tal "cultura maker" exibe algumas características dignas de questionamento. Uma delas é justamente essa orientação ao "make", que cristaliza com vocabulário o hábito de "fazer" coisas, mas é usualmente interpretado simplesmente como "fabricar novas coisas". Não que a cultura maker tenha sido assim desde o início. Ainda acho que existia um romantismo nos primeiros tempos (bem capturado no Makers de Cory Doctorow), em que a ênfase vinha de fazer as coisas com as mãos, experimentar, desviar usos, aproveitar ao máximo os recursos à volta. Um espírito que por esses lados a gente aproxima da gambiarra (aqui um monte de posts e links sobre "gambiologia", que também é o nome do coletivo mineiro).

Mas daquilo que inicialmente surgia como postura crítica ao consumismo exacerbado, a assim chamada cultura maker hoje parece ter virado somente mais um produtinho na grande prateleira das ideias prontas para vender no capitalismo hiperconectado. Aí um monte de gente com seus Macbooks se junta para comprar Makerbots e ficar brincando de inventar o novo produto que vai estourar nos mercados. E no meio do caminho jogam fora um monte de plástico derretido para prototipar o melhor suporte de ipad do mundo.

Nem vou falar de novo sobre o desperdício de oportunidades quando os talentos voltam-se somente ao mercado. Já falei isso em 2011, e não vi muita coisa mudar desde então:

Hoje em dia, jovens de cidades pequenas que têm potencial precisam migrar para grandes centros em busca de oportunidades. É raro que voltem, o que leva a uma espécie de êxodo criativo. Mesmo aqueles que chegam às cidades grandes também precisam fazer uma escolha difícil: podem vender seu talento criativo ao mercado - por vezes de maneira equilibrada, mas em muitos casos limitando-se a ajudar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro; ou então trocar seu futuro por capital especulativo. Podem também tentar usar suas habilidades para ajudar a sociedade - mas para isso precisam conviver com precariedade e instabilidade. Essa é uma condição insustentável para um país que tanto precisa de inovação e criatividade. Por que razão uma pessoa jovem, criativa, talentosa e consciente não encontra maneiras viáveis de usar essas qualidades para ajudar a sociedade? Alguma coisa está errada. E não me interessa que isso seja verdade no mundo inteiro. Estamos em uma época de transformações e de expectativas altas.

Mas além desse vício no mercado e no vocabulário da indústria (fabricação, protótipos, e de carona vêm junto o público-alvo, a guerrilha e todas aquelas deprimentes metáforas bélicas), essas iniciativas passam longe de qualquer preocupação com sustentabilidade. E olha que já existem construções conceituais muito interessantes no mínimo para refletir, como o cradle to cradle (que por mais inexequível que seja oferece ao menos bons argumentos para refletir sobre as finalidades dos esforços criativos). E a impressão que tenho aqui no Brasil é que se está jogando fora a gambiarra (que é nossa, tropicalizada, precária e adaptável) por uma imagem idealizada de cultura maker limpinha dos labs do primeiro mundo. Sendo que a gambiarra parece ter muito mais potência do que a linguagem dos protótipos industriais, como sugeriu o Gabriel Menotti. Aqui um trecho da minha dissertação sobre isso:

Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.

E para continuar na viagem egocêntrica (como já fui categorizado por um mala por aí), mais um trecho da dissertação:

De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).

Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, bruto. Os objetos produzidos raramente são recicláveis. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.

No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.

E para encerrar o festival de autocitações, uma nota de rodapé sobre as impressoras 3D:

A própria nomenclatura utilizada para denominá-la[s] indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.

Enfim, algumas inquietações que já estavam latentes mas o artigo recomendado pela Raquel fez despertar de novo. Daqui a dois meses darei um curso sobre gambiarra e "repair culture" e pretendo retomar algumas dessas reflexões. Por enquanto, o único comentário: gambiarra vale muito mais do que a maker culture. E daqui a cinco anos, quando a moda passar, a gambiarra vai continuar necessária. Espero que não tenha sido deixada de lado pelos ventos do hype.

Pós-digital

Florian Cramer publicou um belo artigo sobre pós-digital no APRJA (A Peer Reviewed Journal About). Com menos brilhantismo e mais confusão, eu escrevi neste blog aqui há dois anos e meio sobre o mesmo tema, já então dialogando com o livro que havia publicado alguns meses antes. O artigo de Cramer é interessante porque ataca de vários lados a contradição entre a relevância e o incômodo em se falar de "pós-digital". Se de um lado parece uma condição concreta, de uma certa superação do uso da ideia da digitalização enquanto diferenciação de construções obsoletas, de outro pode sugerir uma definição vazia justamente por colocar-se como etapa posterior de outra que está longe de se ver extinta.

Cramer soluciona em parte esta contradição entendendo o "pós" no sentido do pós-punk, de uma articulação que se situa como continuação ao mesmo tempo em que se diferencia de maneira essencial de seu referente. Para mim ainda faz sentido pensar no pós-digital como momento em que diversos mitos (a falsa oposição digital x analógico, por exemplo) são questionados. Para Cramer, o pós-digital é também a contraposição à "nova mídia". E propõe que a oposição real não seja entre "novas mídias" e "velhas mídias', mas entre "mídia DIY (faça-você-mesmo)" e "mídia corporativa".

Transmediale 2014

Tá no ar a chamada por trabalhos para a edição de 2014 do Transmediale. Os temas são bem conhecidos por aqui:

 
Bora, Brasil? Mandem suas propostas (e podem prever uma etapa prévia aqui em Ubatuba em outubro).