Aparelhos e programas

Villem Flusser, n'a Filosofia da Caixa Preta (pp. 32/33):

Uma distinção deve ser feita: hardware e software. Enquanto objeto duro, o aparelho fotográfico foi programado para produzir automaticamente fotografias; enquanto coisa mole, impalpável, foi programado para permitir ao fotógrafo fazer com que fotografias deliberadas sejam produzidas automaticamente. São dois programas que se co-implicam. Por trás destes, há outros. O da fábrica de aparelhos fotográficos: aparelho programado para programar aparelhos. O do parque industrial: aparelho programado para programar indústrias de aparelhos fotográficos e outros. O econômico-social: aparelho programado para programar o aparelho industrial, comercial e administrativo. O político-cultural: aparelho programado para programar aparelhos econômicos, culturais, ideológicos e outros. Não pode haver um "último" aparelho, nem um "programa de todos os programas". Isto porque todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas está aberta para cima.

Isso implica o seguinte: os programadores de determinado programa são funcionários de um metaprograma, e não programam em função de uma decisão sua, mas em função do metaprograma. De maneira que os aparelhos não podem ter proprietários que os utilizem em função de seus próprios interesses, como no caso das máquinas. O aparelho fotográfico funciona em função dos interesses da fábrica, e esta, em função dos interesses do parque industrial. E assim ad infinitum. Perdeu-se o sentido da pergunta: quem é o proprietário dos aparelhos. O decisivo em relação aos aparelhos não é quem os possui, mas quem esgota o seu programa.

Flusser fala sobre a fotografia, mas aqui pode estar falando sobre a tecnologia como um todo. Sob a ótica da apropriação, dá pra articular a argumentação dizendo que a pretidão (opacidade?) da caixa, antes de ser obstáculo, é uma medida do desafio, e um motor. Se uma caixa totalmente preta é refratária à apropriação, por outro lado uma caixa totalmente transparente não desperta o desejo de meterem-se as mãos. O desejo e a prática da apropriação moram ali no meio. Claro que a pretidão da caixa depende também de repertório e experiência, mas ainda assim, me parece que a vontade de raquear depende de estar nem em uma nem na outra posição.