Cyberpunk de chinelos

Escrevi isso para o Simpósio de Arte Contemporânea que vai acontecer no fim do mês no Paço das Artes, em Sampa. Também vou mediar uma mesa sobre "Redes Sociais, Arquivo e Acesso".

O mundo virou cyberpunk. Cada vez mais as pessoas fazem uso de dispositivos eletrônicos de registro e acesso às redes - câmeras, impressoras, computadores, celulares - e os utilizam para falar com parentes distantes, para trabalhar fora do escritório, para pesquisar a receita culinária excêntrica da semana ou a balada do próximo sábado. Telefones com GPS mudam a relação das pessoas com as ideias de localidade e espaço. Múltiplas infra-estruturas de rede estão disponíveis em cada vez mais localidades. Essa aceleração tecnológica não resolveu uma série de questões: conflito étnico/cultural e tensão social, risco de colapso ambiental e lixo por todo lugar, precariedade em vários aspectos da vida cotidiana, medo e insegurança em toda parte. Mas ainda assim embute um grande potencial de transformação.

O rumo da evolução da tecnologia de consumo até há alguns anos era óbvio - criar mercados, extrair o máximo possível de lucro e manter um ritmo auto-suficiente de crescimento a partir da exploração de inovação incremental, gerando mais demanda por produção e consumo. Em determinado momento, a mistura de competição e ganância causou um desequilíbrio nessa equação, e hoje existem possibilidades tecnológicas que podem ser usadas para a busca de autonomia, libertação e auto-organização - não por causa da indústria, mas pelo contrário, apesar dos interesses dela. As ruas acham seus próprios usos para as coisas, parafraseando William Gibson. Em algum sentido obscuro, as corporações de tecnologia se demonstraram muito mais inábeis do que sua contrapartida ficcional: perderam o controle que um dia imaginaram exercer.

O tipo de pensamento que deu substância ao movimento do software livre possibilitou que os propósitos dos fabricantes de diferentes dispositivos fossem desviados - roteadores de internet sem fio que viram servidores versáteis, computadores recondicionados que podem ser utilizados como terminais leves para montar redes, telefones celulares com wi-fi que permitem fazer ligações sem precisar usar os serviços da operadora. Um mundo com menos intermediários, ou pelo menos um mundo com intermediários mais inteligentes - como os sistemas colaborativos emergentes de mapeamento de tendências baseados na abstração estatística da cauda longa.

Por outro lado, existe também a reação. Governos de todo o mundo - desde os países obviamente autoritários como o Irã até algumas surpresas como a França - têm tentado restringir e censurar as redes informacionais. O espectro do grande irmão, do controle total, continua nos rondando, e se reforça com a sensação de insegurança estimulada pela grande mídia - a quem também interessa que as redes não sejam assim tão livres.

Nesse contexto, qual o papel da arte? Em especial no Brasil, qual vem a ser o papel da arte que supostamente deveria dialogar com as tecnologias - arte eletrônica, digital, em "novas" mídias? Vêem-se artistas reclamando e demandando espaço, consolidação funcional e formal, reconhecimento, infra-estrutura, formação de público. São demandas justas, mas nem chegam a passar perto de uma questão um pouco mais ampla - qual o papel dessa arte na sociedade? Essa "nova" classe artística tem alguma noção de qual é a sociedade com a qual se relaciona?

É recorrente uma certa projeção dos circuitos europeus de arte em novas mídias, como se quisessem transpor esses cenários para cá. Não levam em conta que todos esses circuitos foram construídos a partir do diálogo entre arte e os anseios, interesses e desejos de uma parte da população que é expressiva tanto em termos simbólicos como quantitativos. Se formos nos ater à definição objetiva, o Brasil não tem uma "classe média" como a europeia. O que geralmente identificamos com esse nome não tem tamanho para ser média. Aquela que seria a classe média em termos estatísticos não tem o mesmo acesso a educação e formação. É paradoxal que a "classe artística" demande que as instituições e governo invistam em formação de audiência, mas se posicione como alheia a essa formação, como se só pudesse se desenvolver no dia em que a "nova classe média" for suficientemente educada para conseguir entender a arte, e suficientemente próspera para consumi-la.

Muita gente não entendeu que não só o Brasil não vai virar uma Europa, como o mais provável é que o mundo inteiro esteja se tornando um Brasil - simultaneamente desenvolvido, hiperconectado e precário. Não entendeu que o Brasil é uma nação cyberpunk de chinelos: passamos mais tempo online do que as pessoas de qualquer outro país; desenvolvemos uma grande habilidade no uso de ferramentas sociais online; temos computadores em doze prestações no hipermercado, lanhouses em cada esquina e celulares com bluetooth a preços acessíveis, o que transforma fundamentalmente o cotidiano de uma grande parcela da população - a tal "nova classe média". Grande parte dessas pessoas não tem um vasto repertório intelectual no sentido tradicional, mas (ou justamente por isso) em nível de apropriação concreta de novas tecnologias estão muito à frente da elite "letrada".

Para desenvolver ao máximo o potencial que essa habilidade espontânea de apropriação de tecnologias oferece, precisamos de subsídios para desenvolver consciência crítica. Para isso, o mundo da arte pode oferecer sua capacidade de abrangência conceitual, questionamento e síntese. Vendo dessa forma, as pessoas precisam da arte. Mas a arte precisa saber (e querer) responder à altura. Precisa estar disposta a sujar os pés, misturar-se, sentir cheiro de gente e construir diálogo. Ensinar e aprender ao mesmo tempo. Será que alguém ainda acredita nessas coisas simples e fundamentais?

9 comments on Cyberpunk de chinelos

  1. Luiz Paulo Collombiano (não verificado)
    ter, 01/11/2011 - 10:12

    Belo texto e servindo para hackeamento no mundo real :)

    Grato

  2. Wanderlinne Selva (verificado sim!)) (não verificado)
    qua, 12/10/2011 - 21:02

    Bom texto, efe!

     

    Mas porque tinha que acabar com uma última frase pessimista? Achei o niilismo desnecessário. Não só milhões acreditam como somos estes que estamos fazendo as coisas serem o que são e como são, para o bem e para o mal.

     

    abs,

    wan

     

    PS: Escrevendo do mac do Estraviz :)

  3. efeefe
    qua, 12/10/2011 - 23:12

    Alô Wan, minha prima! Não foi pessimismo, mas uma provocação. Claro que eu sei que tem gente que acreditamos no que acreditamos. Mas esse texto foi originalmente escrito para chegar a pessoas em outros cantos. Fiquei com vontade de saber se elas também compartilhavam dessa ânsia de mudança... 

  • Lucasa (não verificado)
    sab, 17/10/2009 - 14:24
    Muito bom o artigo. Enxergo em vários lugares esse modus brazuca cyberpunk. Continue trabalhando nessa linha.
  • Tati (não verificado)
    sex, 02/10/2009 - 09:32
    Além de gostar das coisas óbvias, tenho certo apreço pelas simples e fundamentais...
  • Ricardo Brazileiro (não verificado)
    qui, 01/10/2009 - 00:34
    Cyberpunk de chinelos é um termo muito bom de ouvir, já me identifiquei de cara. O texto sintetiza bem essa multidão que ta aí lotando os nós da rede, se misturando, trocando idéias, pensamentos. Pra mim, o grande lance nessa questão da arte, é que parece que esqueceram do poder dessa linguagem como ferramenta de expressão política e social e que poucas pessoas vêem as interfaces digitais como meio para produção de obras que tem algo a dizer, a questionar de verdade. Mas também não sou muito a favor de que a arte tenha obrigatoriamente algo a dizer, ela as vezes quer falar sozinha. Abz
  • Rafael etc. (não verificado)
    qua, 30/09/2009 - 19:47
    Quando li o título me identifiquei na hora, não saio de casa sem as minhas sandálias. =) Acredito que, isso circulando aqui pela capital de SP, visitando essas exposições, dialogando com o pessoal que anda fazendo a dita "arte eletrônica", acabo me distanciando da onde eu vim, Limeira, interior São Paulo. Não que lá a tecnologia não seja presente, a área azul de lá é controlada por parquimetros eletrônicos, sem necessidade de estabelecimento para comprar o dito cartão/bilhete, o cara coloca a moeda, aperta o botão e pronto, coloca o bilhete no carro, sem precisar preencher formulário a caneta. Mas acho engraçado os desdobramentos de certas equipamentos tecnólogicos como, por exemplo, o videokê. Se manifestou primeiramente na dita classe dominante (pelo alto custo do equipamento) e foi indo para bares e bordéis, se democratizou. Ainda que existam lugares que cultuem o videokê de elite - se é que exista isso - o povão assimila isso e o transforma para sua cultura. O resultado são lista de músicas bregas, e que todos que a freqüentam sabem cantar (ou não, mas o mérito não é esse). Mas nessa indagação minha ainda se encontra o intermediário, o cara que programa, o cara que distribui. E a maioria também são povão, realmente não se precisa de pesquisa para saber que músicas o público quer, o cara que programa faz parte do público. Nessa função do fazer, agente começa a se apropriar das coisas quando aprende como funciona. Aprende uns acordes, lembra do ritmo e toca a música no violão. Dai quando ensinam que a nota dominante do acorde agente começa a procurar a tônica que rege cada acorde, e nisso vai explorando o som que se pode tirar com o instrumento. Não que seja necessário aprender música com o violão, conheço muita gente que aprendeu música tocando só trompete em banda marcial. Mas o violão pela sua complexidade, consegue dar margem ao aprendizado mais abrangente. Se faz rock, bossa, samba, ritmo e percussão, tudo num instrumento só. Só sei que é uma doideira, mas há de ser o momento que as pessoas necessitarão entender o processo, para não tratar dispositivos tecnológicos apenas de maneira análoga, como a moça do trabalho esses dias, que recebeu um texto que tinha dois espaços entre as palavras e estava eliminando isso linha a linha, com o backspace. Para mostrar que o computador é uma extensão do seu trabalho e não que faz o seu trabalho e ir em "Editar/Procurar/Substituir por" é uma técnica da ferramenta, pode abrir margem para ela compreender uma instalação em que quando ela se move o objeto tem uma reação. Ou não. Eu sigo nessa me perguntando, como eu disse, só sei que é uma doidera.
  • dasilvaorg (não verificado)
    qua, 30/09/2009 - 18:23
    Do ponto de vista de quem nunca teve "acesso" a um tipo de arte, vamos dizer "elitista", concordo. Essa "arte" assusta a gente. Essa coisa conceitual, feita a partir de interpretações de acessos. No fim tudo se resume a que acessos você teve e como foi "adestrado" para discursivisar isto. Estes dias eu estava me questionando se existe pensamento selvagem, não colonizado, próprio de alguma coisa brazuca. Tangencia mais ou menos aquela tua busca pelo que define um "jeitin" brasileiro, e que você acabou chegando na festa. Tem esse imaginário que brasileiro sabe se relacionar. Uma pesquisadora francesa que transita por aqui e trabalha com histórias orais disse que isto é perceptível quando há um brasileiro nos círculos por lá. Mas eu me pergunto, sabe se relacionar porque é brasileiro? Não sei, complicado. Generalizante demais. Ao mesmo tempo ela disse que sabe que toda família paraíbana acaba nos almoços de família se reunindo e recitando Augusto dos Anjos. Aí eu disse: "discordo", meu pai não sabe nem quem foi Augusto dos Anjos e eu particularmente nunca li. O que tem horas que eu vejo, na minha própria casa, é que é muito difícil tentar se aproximar de qualquer realidade do "Outro". Especialmente complexo é abordar esse "Outro" supostamente pobre, supostamente carente, supostamente supostamente. Os referenciais de valores são muito díspares. Temos um grande desafio por aí ô mago, mito hacker. Mas estamos na práxis e é isto que importa. Boa participação no evento!
  • J.P. "Coiote" (não verificado)
    qua, 30/09/2009 - 18:23
    Não fosse o twitter (@remixtures RT @efeefe), não teria chegado a esse artigo maravilhoso. Parabéns! Ah, e não vou negar que fiquei especialmente feliz por ver, logo no início, a merecida menção a William Gibson. Abraço, João Paulo.