lifelog http://desvio.cc/taxonomy/term/245/all pt-br Meio-relato: residĂȘncia na VCUQatar, em Doha http://desvio.cc/blog/meio-relato-residencia-na-vcuqatar-em-doha <p>Como j&aacute; relatei anteriormente <a href="http://desvio.cc/blog/chegando-doha">aqui neste blog</a>, passei em novembro de 2014 duas semanas em Doha, capital do Catar. Fui a convite do mestrado em design da <a href="http://www.qatar.vcu.edu/mfa">VCUQatar</a>, no papel de designer residente. O tema da minha resid&ecirc;ncia era &quot;repair culture&quot;.</p> <p>Desde que retornei do Qatar, estou rabiscando um relato de viagem. Daqueles relatos longos e detalhados que eu costumo fazer (como <a href="http://ubalab.org/blog/diario-do-ventre-da-besta-parte-1">este</a> ou <a href="http://desvio.cc/blog/rol%C3%AA-parte-1-velhomundo-continental">este</a>). Mas n&atilde;o saiu. Pode ser a falta de chuvas, pode ser o tempo curto em meio a um monte de tarefas profissionais, volunt&aacute;rias e epis&oacute;dios novos na vida. Ou pode ser o fato de que eu ainda nem decidi se escrevo Catar ou Qatar. Mas por enquanto vou deixar de lado o relato mais longo, e publico aqui somente alguns apontamentos.</p> <p><img alt="" src="https://farm6.staticflickr.com/5611/15057220983_c67f805b7b_z_d.jpg" /></p> <p>Doha me impressionou menos pelas diferen&ccedil;as do que pelas semelhan&ccedil;as com um certo estilo de vida brasileiro e em especial paulistano. Meus anfitri&otilde;es na universidade, ambos europeus, chegaram a me perguntar o que eu tinha achado do tratamento VIP que recebi em Doha - hotel, refei&ccedil;&otilde;es, motorista, ar condicionado. Fiquei algo constrangido de admitir que, ainda que inconfort&aacute;vel, n&atilde;o tinha estranhado aquela situa&ccedil;&atilde;o tanto quanto eles. Al&eacute;m disso, a cidade avessa a pedestres, os shopping centers, a cafonice dos pr&eacute;dios brilhantes que mudam de cor e o consumismo e ostenta&ccedil;&atilde;o, t&atilde;o ris&iacute;veis quanto previs&iacute;veis, tamb&eacute;m cheiram muito &agrave; capital paulistana. Como se Doha fosse um retrato do que S&atilde;o Paulo pode se tornar se uma s&eacute;rie de decis&otilde;es erradas continuarem a ser tomadas. Mas a pior piada que surgiu foi que, j&aacute; naquela &eacute;poca, a deserta Doha tinha mais acesso a &aacute;gua do que a S&atilde;o Paulo que um dia foi <a href="https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc">recortada por rios</a>.</p> <p><img alt="" src="https://farm9.staticflickr.com/8617/15877631011_70bc48c091_z_d.jpg" /></p> <p>Existem in&uacute;meras peculiaridades sobre o Catar que podem ser encontradas na <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/Qatar">wikipedia.</a> Certamente despontam algumas diferen&ccedil;as em rela&ccedil;&atilde;o a outros pa&iacute;ses da regi&atilde;o. As quase duas d&eacute;cadas de reinado do Emir <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/Hamad_bin_Khalifa_Al_Thani">Hamad Al Thani</a> (e de igual ou possivelmente maior import&acirc;ncia, de sua esposa <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/Mozah_bint_Nasser_al-Missned">Mozah</a>) fizeram o pa&iacute;s se diferenciar na regi&atilde;o. O Catar hoje tem o trig&eacute;simo primeiro IDH no mundo (o maior do mundo &aacute;rabe). Mulheres podem estudar (e vou falar mais sobre isso em seguida). A <a href="http://qma.org.qa/">institui&ccedil;&atilde;o cultural do Qatar</a> tem o segundo maior or&ccedil;amento de cultura no mundo (ok, quase totalmente gasto com ostenta&ccedil;&atilde;o, mas ainda assim uma posi&ccedil;&atilde;o not&aacute;vel). O pa&iacute;s criou e sustenta a <a href="http://www.aljazeera.com/">Al-Jazeera</a>, que eu passei a assistir quando estava por l&aacute; e me impressionou por tratar de maneira abrangente temas dif&iacute;ceis. Os habitantes do pa&iacute;s n&atilde;o pagam impostos, e os cidad&atilde;os locais t&ecirc;m educa&ccedil;&atilde;o e sa&uacute;de de gra&ccedil;a. &Eacute; claro que, aqui, surge uma quest&atilde;o importante. Os cidad&atilde;os s&atilde;o uma minoria - cerca de trezentos mil num universo que beira os dois milh&otilde;es de habitantes. Nem, de um lado, os executivos ou trabalhadores do conhecimento ocidentais, nem de outro os trabalhadores bra&ccedil;ais, de com&eacute;rcio e servi&ccedil;os do sudeste asi&aacute;tico e outros pa&iacute;ses &aacute;rabes, costumam ter o direito de naturalizar-se. Existe um regime de classes bastante marcado em Doha. Um motorista de Bangladesh, por exemplo, provavelmente n&atilde;o seria admitido em um pubs dos hoteis internacionais para bebericar uma cerveja que &eacute; proibida em qualquer outro estabelecimento do pa&iacute;s. Eu gostaria de afirmar que situa&ccedil;&otilde;es id&ecirc;nticas n&atilde;o acontecem em S&atilde;o Paulo, mas n&atilde;o tenho tanta certeza assim.</p> <p>A universidade, que fica dentro da Education City de Doha, era um mundo &agrave; parte. Fui muito bem recebido pelos professores <a href="http://www.qatar.vcu.edu/people/thomas-modeen">Thomas Modeen</a> e <a href="http://www.qatar.vcu.edu/people/marco-bruno">Marco Bruno</a>. Trabalhei com um grupo de dez estudantes dos dois anos do mestrado. Eram oito meninas e dois garotos. De dez nacionalidades distintas, mas ningu&eacute;m do Catar. Egito, Barein, Kuwait, Fran&ccedil;a, Palestina, Estados Unidos, Canad&aacute;, Bangladesh, Paquist&atilde;o e Sud&atilde;o. Grande parte daquela turma n&atilde;o teria oportunidades de estudar em seus pr&oacute;prios pa&iacute;ses. Com uma &uacute;nica exce&ccedil;&atilde;o, o restante era de mu&ccedil;ulmanos. Todo mundo muito criativo, competente e bem preparado. Boa parte deles vinha da arquitetura ou design de moda. A faculdade tem todo tipo de laborat&oacute;rio - de fotografia, v&iacute;deo, fabrica&ccedil;&atilde;o digital, joalheria, um reposit&oacute;rio de materiais, e por a&iacute; vai. E a biblioteca &eacute; deliciosa.</p> <p><img alt="" src="https://farm9.staticflickr.com/8641/15748870439_019f1fcd79_z_d.jpg" /></p> <p>Meu per&iacute;odo de resid&ecirc;ncia come&ccedil;ou com algumas conversas sobre lixo, descarte e reuso. O pessoal j&aacute; tinha uma boa no&ccedil;&atilde;o das quest&otilde;es cr&iacute;ticas nessas &aacute;reas, mas nunca tinha sido uma prioridade para eles pensar nesses temas. Exibi e conversamos sobre alguns v&iacute;deos - ilha das flores, obsolesc&ecirc;ncia programada, lixo extraordin&aacute;rio, digital handcraft.</p> <p>Debatemos um pouco sobre uma quest&atilde;o que me parece essencial. Segue abaixo um rascunho do que deve voltar em breve como um texto &agrave; parte.</p> <blockquote> <p>A tal &quot;cultura maker&quot; surgiu, ao menos em parte, em cen&aacute;rios que costumavam apontar para o reuso e o conserto como fundamentais para garantir futuros mais sustent&aacute;veis. Mas hoje em dia parece que tudo isso foi deixado de lado e que todo esse universo de hype est&aacute; voltado para criar prot&oacute;tipos - feitos de pl&aacute;stico derretido de dif&iacute;cil reciclagem - de novos produtos. Como se o mundo j&aacute; n&atilde;o tivesse objetos fabricados em demasia!</p> <p>A mim, parece absurdo que as tecnologias de fabrica&ccedil;&atilde;o digital n&atilde;o estejam fundamentalmente voltadas para se pensar maneiras de continuar usando objetos que j&aacute; est&atilde;o por a&iacute;. Me parece inadequado e falso enquadr&aacute;-las na refer&ecirc;ncia de uma &quot;nova era industrial&quot;. A era industrial trouxe, &eacute; certo, avan&ccedil;os important&iacute;ssimos para a humanidade. Mas gerou tamb&eacute;m aliena&ccedil;&atilde;o, desigualdade e impacto ambiental profundos. Chega de dar sobrevida &agrave; era industrial - precisamos de outros modelos de produ&ccedil;&atilde;o e distribui&ccedil;&atilde;o. O crescimento do interesse da opini&atilde;o p&uacute;blica por alimenta&ccedil;&atilde;o org&acirc;nica, tratamento de lixo, habilidades manuais e afins me parecem ser o contrabalan&ccedil;o dessa tend&ecirc;ncia, e precisamos ter isso em mente.</p> </blockquote> <p>Enfim, tivemos a oportunidade de debater estas quest&otilde;es (e o fato de eu conseguir resumi-las em dois par&aacute;grafos &eacute; um dos maiores frutos da minha resid&ecirc;ncia na VCUQ), e decidimos as a&ccedil;&otilde;es para as duas semanas que eu ficaria por l&aacute;. Em primeiro lugar, visitar&iacute;amos alguns artes&atilde;os que ainda produzem coisas com as pr&oacute;prias m&atilde;os - marceneiros, alfaiates, tapeceiros, etc. A ideia era conversar sobre seu of&iacute;cio, habilidades, ferramentas, forma&ccedil;&atilde;o e afins. Far&iacute;amos o mesmo com pessoas que consertavam coisas - principalmente sapateiros e relojoeiros. Tamb&eacute;m planejamos sa&iacute;das a um cemit&eacute;rio de pneus e um cemit&eacute;rio de autom&oacute;veis, ambos no meio do deserto.</p> <p><img alt="" src="https://farm9.staticflickr.com/8662/15747034898_21249d8421_z_d.jpg" /></p> <p>A pesquisa de campo deu muitos resultados. O &uacute;nico sen&atilde;o foi o cemit&eacute;rio de autom&oacute;veis, que s&oacute; pudemos ver do lado de fora porque chegamos depois do hor&aacute;rio de visita&ccedil;&otilde;es. Mas de resto, fizemos excelentes entrevistas, conversas e imagens.</p> <p>Outra atividade que nos propusemos a desenvolver foi um Repair Cafe dentro da VCUQ. Em uma sociedade de alto poder aquisitivo e praticamente sem nenhuma preocupa&ccedil;&atilde;o com o descarte apropriado de objetos sem uso, pareceu-nos interessante desenvolver um encontro voltado ao conserto e ao reuso. Tivemos dois dias - um para receber os materiais e outro para explorar possibilidades com eles. Trabalhamos tamb&eacute;m com objetos encontrados no cemit&eacute;rio de pneus. Sa&iacute;mos com uma s&eacute;rie de objetos reaproveitados, e mais do que isso com algumas indica&ccedil;&otilde;es de como organizar uma metodologia colaborativa voltada ao conserto de coisas.</p> <p>Os &uacute;ltimos dias foram dedicados a organizar a documenta&ccedil;&atilde;o de meu per&iacute;odo por l&aacute;, que resultou em uma publica&ccedil;&atilde;o digital. Tenho ainda que rever meu texto de introdu&ccedil;&atilde;o, que ainda n&atilde;o est&aacute; perfeito, e em breve vou agitar para fechar essa publica&ccedil;&atilde;o. Assim que rolar, publico por aqui.</p> <p>De resto, faltam todos os meus apontamentos culturais e do cotidiano do Catar. Esses eu deixo para contar pessoalmente, talvez ao aroma do caf&eacute; turco que trouxe de l&aacute;. Mas voltei satisfeito de ter tocado uma s&eacute;rie de quest&otilde;es importantes e de ter conhecido bastante gente interessante e que ainda vai fazer muita coisa pelo mundo afora.</p> <p><img alt="" src="https://farm8.staticflickr.com/7541/15311272494_1cac41b7f4_z_d.jpg" /></p> <p>E ainda reencontrei na sincronicidade uma amiga que n&atilde;o via fazia tempo, vi o sol descer nas dunas, tomei caf&eacute; numa tenda &aacute;rabe no deserto. Fui ao shopping, ao supermercado, ao mercado central. Nos fones de ouvido estiveram principalmente a trilha sonora de <a href="http://www.imdb.com/title/tt0345061/?ref_=fn_al_tt_1">C&oacute;digo 46</a> e o <a href="https://duckduckgo.com/l/?kh=-1&amp;uddg=http%3A%2F%2Fdjspooky.com%2Farticles%2Fvenice_2007.php">Ghost World do Dj Spooky</a>. Ah, e tenho muito mais fotos no <a href="https://www.flickr.com/photos/felipefonseca/sets/72157649068360535/">flickr</a>.</p> <p><strong>P.S.:</strong> publiquei tamb&eacute;m mais algumas anota&ccedil;&otilde;es junto a outro <a href="http://redelabs.org/blog/lab-ars-electronica-itu-telecom-doha-catar">post no blog redelabs</a>.</p> http://desvio.cc/blog/meio-relato-residencia-na-vcuqatar-em-doha#comments gambiologia lifelog qatar repair culture residĂȘncias trip vcuq Tue, 20 Jan 2015 05:51:24 +0000 efeefe 238 at http://desvio.cc