cultura maker http://desvio.cc/taxonomy/term/233/all pt-br Fabricação, conserto e "porque dá" http://desvio.cc/blog/fabricacao-conserto-e-porque-da <p>Raquel Renn&oacute; mandou pela <a href="https://www.facebook.com/raquel.renno1/posts/10152349315779856">rede social do capeta</a> um bom artigo no Medium com o t&iacute;tulo &quot;<a href="https://medium.com/re-form/just-because-you-can-doesnt-mean-you-should-252fdbcf76c8">Yes we can. But should we?</a>&quot;, que levanta uma vis&atilde;o um pouco mais cr&iacute;tica pra toda a coisa da &quot;cultura maker&quot;. Traduzindo livremente um trecho:</p> <blockquote> <p>Parece haver uma confus&atilde;o conceitual sobre o que a impress&atilde;o 3D possibilita ou n&atilde;o. Ela nos permite encantar uma crian&ccedil;a de quatro anos criando praticamente do nada um mini Darth Vader? Sim, permite. Mas o objeto n&atilde;o se materializa do nada. Uma impressora 3D consome de cinquenta a cem vezes mais energia el&eacute;trica para fazer um objeto do que o processo de inje&ccedil;&atilde;o de pl&aacute;stico moldado. Al&eacute;m disso, as emiss&otilde;es de uma impressora 3D de mesa s&atilde;o similares a queimar um cigarro ou cozinhar em um fog&atilde;o a g&aacute;s ou el&eacute;trico. E o material escolhido para todas essas novas coisas que estamos clamando por fazer &eacute; esmagadoramente o pl&aacute;stico. De certo modo, &eacute; um deslocamento ambiental para o lado inverso, contrapondo-se a leis recentes para reduzir o uso de pl&aacute;stico que banem sacolas pl&aacute;sticas e estimulam a reformula&ccedil;&atilde;o de embalagens. Ao mesmo tempo em que mais pessoas levam sacolas de tecido para o supermercado, o pl&aacute;stico se acumula em outros campos, da Techshop &agrave; Target.</p> </blockquote> <p>De fato, a moda corrente da tal &quot;cultura maker&quot; exibe algumas caracter&iacute;sticas dignas de questionamento. Uma delas &eacute; justamente essa orienta&ccedil;&atilde;o ao &quot;make&quot;, que cristaliza com vocabul&aacute;rio o h&aacute;bito de &quot;fazer&quot; coisas, mas &eacute; usualmente interpretado simplesmente como &quot;fabricar novas coisas&quot;. N&atilde;o que a cultura maker tenha sido assim desde o in&iacute;cio. Ainda acho que existia um romantismo nos primeiros tempos (bem capturado no <a href="http://desvio.cc/blog/fazedorxs">Makers</a> de Cory Doctorow), em que a &ecirc;nfase vinha de fazer as coisas com as m&atilde;os, experimentar, desviar usos, aproveitar ao m&aacute;ximo os recursos &agrave; volta. Um esp&iacute;rito que por esses lados a gente aproxima da gambiarra (aqui um monte de <a href="http://desvio.cc/tag/gambiologia">posts</a> e <a href="http://links.metareciclagem.org/tags.php/gambiologia">links</a> sobre &quot;gambiologia&quot;, que tamb&eacute;m &eacute; o nome do <a href="http://gambiologia.net">coletivo mineiro</a>).</p> <p>Mas daquilo que inicialmente surgia como postura cr&iacute;tica ao consumismo exacerbado, a assim chamada cultura maker hoje parece ter virado somente mais um produtinho na grande prateleira das ideias prontas para vender no capitalismo hiperconectado. A&iacute; um monte de gente com seus Macbooks se junta para comprar <a href="http://makerbot.com/">Makerbots</a> e ficar brincando de inventar o novo produto que vai estourar nos mercados. E no meio do caminho jogam fora um monte de pl&aacute;stico derretido para prototipar o melhor suporte de ipad do mundo.</p> <p>Nem vou falar de novo sobre o desperd&iacute;cio de oportunidades quando os talentos voltam-se somente ao mercado. J&aacute; falei isso <a href="http://efeefe.no-ip.org/livro/lpd/inovacao-tecnologias-livres-2">em 2011</a>, e n&atilde;o vi muita coisa mudar desde ent&atilde;o:</p> <blockquote> <p>Hoje em dia, jovens de cidades pequenas que t&ecirc;m potencial precisam <em>migrar para grandes centros</em> em busca de oportunidades. &Eacute; raro que voltem, o que leva a uma esp&eacute;cie de <em>&ecirc;xodo criativo</em>. Mesmo aqueles que chegam &agrave;s cidades grandes tamb&eacute;m precisam fazer uma escolha dif&iacute;cil: podem <em>vender seu talento criativo ao mercado</em> - por vezes de maneira equilibrada, mas em muitos casos limitando-se a ajudar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro; ou ent&atilde;o trocar seu futuro por capital especulativo. Podem tamb&eacute;m tentar usar suas habilidades para ajudar a sociedade - mas para isso precisam conviver com precariedade e instabilidade. Essa &eacute; uma <em>condi&ccedil;&atilde;o insustent&aacute;vel</em> para um pa&iacute;s que tanto precisa de inova&ccedil;&atilde;o e criatividade. Por que raz&atilde;o uma pessoa jovem, criativa, talentosa e consciente n&atilde;o encontra maneiras vi&aacute;veis de usar essas qualidades para ajudar a sociedade? Alguma coisa est&aacute; errada. E n&atilde;o me interessa que isso seja verdade no mundo inteiro. Estamos em uma &eacute;poca de transforma&ccedil;&otilde;es e de expectativas altas.</p> </blockquote> <p>Mas al&eacute;m desse v&iacute;cio no mercado e no vocabul&aacute;rio da ind&uacute;stria (fabrica&ccedil;&atilde;o, prot&oacute;tipos, e de carona v&ecirc;m junto o p&uacute;blico-alvo, a guerrilha e todas aquelas deprimentes met&aacute;foras b&eacute;licas), essas iniciativas passam longe de qualquer preocupa&ccedil;&atilde;o com sustentabilidade. E olha que j&aacute; existem constru&ccedil;&otilde;es conceituais muito interessantes no m&iacute;nimo para refletir, como o <a href="http://www.cradletocradle.com/">cradle to cradle</a> (que por mais inexequ&iacute;vel que seja oferece ao menos bons argumentos para refletir sobre as finalidades dos esfor&ccedil;os criativos). E a impress&atilde;o que tenho aqui no Brasil &eacute; que se est&aacute; jogando fora a gambiarra (que &eacute; nossa, tropicalizada, prec&aacute;ria e adapt&aacute;vel) por uma imagem idealizada de cultura maker limpinha dos labs do primeiro mundo. Sendo que a gambiarra parece ter muito mais pot&ecirc;ncia do que a linguagem dos prot&oacute;tipos industriais, como <a href="http://medialab-prado.es/article/gambiarra">sugeriu o Gabriel Menotti</a>. Aqui um <a href="http://redelabs.org/livro/labs-no-mundo">trecho da minha disserta&ccedil;&atilde;o</a> sobre isso:</p> <blockquote> <p>Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o prot&oacute;tipo &eacute; um objeto cr&iacute;tico de sua pr&oacute;pria fun&ccedil;&atilde;o. Em outras palavras, o prot&oacute;tipo s&oacute; existiria enquanto etapa anterior &agrave; concretiza&ccedil;&atilde;o da vers&atilde;o definitiva de um produto. Entretanto, &agrave; medida em que a topologia da fabrica&ccedil;&atilde;o se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utiliza&ccedil;&atilde;o da ideia de prot&oacute;tipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a nega&ccedil;&atilde;o de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como prot&oacute;tipo implica assumir que ele tem uma exist&ecirc;ncia funcional definida de antem&atilde;o. Menotti sugere a necessidade de pensar outras defini&ccedil;&otilde;es para os objetos resultantes da criatividade aplicada &agrave;s novas tecnologias de fabrica&ccedil;&atilde;o digital. Para ele a gambiarra, ao contr&aacute;rio do prot&oacute;tipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individua&ccedil;&atilde;o &eacute; realizada pelo pr&oacute;prio usu&aacute;rio, possivelmente mais adequada a tempos p&oacute;s-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropria&ccedil;&atilde;o e inven&ccedil;&atilde;o, a partir da explora&ccedil;&atilde;o de indetermina&ccedil;&otilde;es materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas &agrave; medida em que se recusa o encerramento e delimita&ccedil;&atilde;o das fun&ccedil;&otilde;es poss&iacute;veis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, &eacute; poss&iacute;vel pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confec&ccedil;&atilde;o e transforma&ccedil;&atilde;o de objetos. Focar no conserto em vez da fabrica&ccedil;&atilde;o pode ser uma via potente de inven&ccedil;&atilde;o e resist&ecirc;ncia.</p> </blockquote> <p>E para continuar na viagem egoc&ecirc;ntrica (como j&aacute; fui categorizado por um mala por a&iacute;), mais um trecho da disserta&ccedil;&atilde;o:</p> <blockquote> <p>De fato, em uma &eacute;poca na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja propor&ccedil;&atilde;o potencial de reciclagem pode no m&aacute;ximo manter-se est&aacute;vel, a mera sugest&atilde;o de multiplicarem-se os meios de fabrica&ccedil;&atilde;o de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabrica&ccedil;&atilde;o para produzirem-se pe&ccedil;as que possibilitem a reutiliza&ccedil;&atilde;o de materiais, equipamentos e objetos, n&atilde;o encontra tanta repercuss&atilde;o na m&iacute;dia de tecnologia (e ainda menos, como &eacute; de se esperar, na de neg&oacute;cios).</p> <p>Sintomaticamente, <a href="http://refab-space.org/">James Wallbank</a> afirma que a impressora 3D &eacute; o mais complexo e menos &uacute;til dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabrica&ccedil;&atilde;o. Em suas vers&otilde;es acess&iacute;veis, ela tem baixa resolu&ccedil;&atilde;o - resultando em objetos com apar&ecirc;ncia de inacabados, bruto. Os objetos produzidos raramente s&atilde;o recicl&aacute;veis. E a gera&ccedil;&atilde;o de arquivos para produzir objetos com elas exige o dom&iacute;nio de mais conhecimento abstrato e softwares espec&iacute;ficos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imagin&aacute;rio e aos desejos de futuro de camadas maiores da popula&ccedil;&atilde;o. Para ele, entretanto, a cortadora laser &eacute; um dos equipamentos com maior potencial de gerar inova&ccedil;&atilde;o concreta, uma vez que j&aacute; pode entregar produtos acabados ou semiacabados. Costuma contar o caso de um designer gr&aacute;fico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o n&uacute;mero de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. J&aacute; teria contratado tr&ecirc;s pessoas para trabalhar com ele.</p> <p>No Brasil, os Fablabs ainda est&atilde;o limitados em grande medida ao &acirc;mbito acad&ecirc;mico. Alguns hackerspaces t&ecirc;m suas impressoras 3D, mas via de regra est&atilde;o ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produ&ccedil;&atilde;o. &Eacute; digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomenda&ccedil;&otilde;es para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e m&aacute;quinas de bordar, estejam (h&aacute; tempos) presentes em empresas de sinaliza&ccedil;&atilde;o e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. &Eacute; poss&iacute;vel imaginar que os laborat&oacute;rios de fabrica&ccedil;&atilde;o teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclus&atilde;o social atrav&eacute;s do empreendedorismo - incorporando a penetra&ccedil;&atilde;o j&aacute; existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda s&atilde;o raros os projetos que se arriscam nessa seara.</p> </blockquote> <p>E para encerrar o festival de autocita&ccedil;&otilde;es, uma nota de rodap&eacute; sobre as impressoras 3D:</p> <blockquote> <p>A pr&oacute;pria nomenclatura utilizada para denomin&aacute;-la[s] indica um foco primordial em caracter&iacute;sticas t&eacute;cnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam (&quot;somente&quot;) em duas dimens&otilde;es. Pode-se tentar uma interpreta&ccedil;&atilde;o alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite &quot;dar sa&iacute;da&quot; a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso &eacute; jogar a mesma limita&ccedil;&atilde;o conceitual para o software. Outros nomes, como &quot;m&aacute;quinas de prototipagem r&aacute;pida&quot;, como discuti acima, tamb&eacute;m carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisar&iacute;amos pensar que elas s&oacute; se prestam a prot&oacute;tipos? Uma solu&ccedil;&atilde;o poss&iacute;vel seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou tr&ecirc;s dimens&otilde;es e cham&aacute;-las de &quot;impressoras de coisas&quot; ou &quot;fabricadoras de coisas&quot;. Afinal, em um Makerspace s&atilde;o utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.</p> </blockquote> <p>Enfim, algumas inquieta&ccedil;&otilde;es que j&aacute; estavam latentes mas o artigo recomendado pela Raquel fez despertar de novo. Daqui a dois meses darei um curso sobre gambiarra e &quot;repair culture&quot; e pretendo retomar algumas dessas reflex&otilde;es. Por enquanto, o &uacute;nico coment&aacute;rio: gambiarra vale muito mais do que a maker culture. E daqui a cinco anos, quando a moda passar, a gambiarra vai continuar necess&aacute;ria. Espero que n&atilde;o tenha sido deixada de lado pelos ventos do hype.</p> http://desvio.cc/blog/fabricacao-conserto-e-porque-da#comments cultura maker fabricação gambiarra gambiologia metareciclagem refab space Fri, 19 Sep 2014 23:28:10 +0000 efeefe 234 at http://desvio.cc