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Meio-relato: residência na VCUQatar, em Doha

Como já relatei anteriormente aqui neste blog, passei em novembro de 2014 duas semanas em Doha, capital do Catar. Fui a convite do mestrado em design da VCUQatar, no papel de designer residente. O tema da minha residência era "repair culture".

Desde que retornei do Qatar, estou rabiscando um relato de viagem. Daqueles relatos longos e detalhados que eu costumo fazer (como este ou este). Mas não saiu. Pode ser a falta de chuvas, pode ser o tempo curto em meio a um monte de tarefas profissionais, voluntárias e episódios novos na vida. Ou pode ser o fato de que eu ainda nem decidi se escrevo Catar ou Qatar. Mas por enquanto vou deixar de lado o relato mais longo, e publico aqui somente alguns apontamentos.

Doha me impressionou menos pelas diferenças do que pelas semelhanças com um certo estilo de vida brasileiro e em especial paulistano. Meus anfitriões na universidade, ambos europeus, chegaram a me perguntar o que eu tinha achado do tratamento VIP que recebi em Doha - hotel, refeições, motorista, ar condicionado. Fiquei algo constrangido de admitir que, ainda que inconfortável, não tinha estranhado aquela situação tanto quanto eles. Além disso, a cidade avessa a pedestres, os shopping centers, a cafonice dos prédios brilhantes que mudam de cor e o consumismo e ostentação, tão risíveis quanto previsíveis, também cheiram muito à capital paulistana. Como se Doha fosse um retrato do que São Paulo pode se tornar se uma série de decisões erradas continuarem a ser tomadas. Mas a pior piada que surgiu foi que, já naquela época, a deserta Doha tinha mais acesso a água do que a São Paulo que um dia foi recortada por rios.

Existem inúmeras peculiaridades sobre o Catar que podem ser encontradas na wikipedia. Certamente despontam algumas diferenças em relação a outros países da região. As quase duas décadas de reinado do Emir Hamad Al Thani (e de igual ou possivelmente maior importância, de sua esposa Mozah) fizeram o país se diferenciar na região. O Catar hoje tem o trigésimo primeiro IDH no mundo (o maior do mundo árabe). Mulheres podem estudar (e vou falar mais sobre isso em seguida). A instituição cultural do Qatar tem o segundo maior orçamento de cultura no mundo (ok, quase totalmente gasto com ostentação, mas ainda assim uma posição notável). O país criou e sustenta a Al-Jazeera, que eu passei a assistir quando estava por lá e me impressionou por tratar de maneira abrangente temas difíceis. Os habitantes do país não pagam impostos, e os cidadãos locais têm educação e saúde de graça. É claro que, aqui, surge uma questão importante. Os cidadãos são uma minoria - cerca de trezentos mil num universo que beira os dois milhões de habitantes. Nem, de um lado, os executivos ou trabalhadores do conhecimento ocidentais, nem de outro os trabalhadores braçais, de comércio e serviços do sudeste asiático e outros países árabes, costumam ter o direito de naturalizar-se. Existe um regime de classes bastante marcado em Doha. Um motorista de Bangladesh, por exemplo, provavelmente não seria admitido em um pubs dos hoteis internacionais para bebericar uma cerveja que é proibida em qualquer outro estabelecimento do país. Eu gostaria de afirmar que situações idênticas não acontecem em São Paulo, mas não tenho tanta certeza assim.

A universidade, que fica dentro da Education City de Doha, era um mundo à parte. Fui muito bem recebido pelos professores Thomas Modeen e Marco Bruno. Trabalhei com um grupo de dez estudantes dos dois anos do mestrado. Eram oito meninas e dois garotos. De dez nacionalidades distintas, mas ninguém do Catar. Egito, Barein, Kuwait, França, Palestina, Estados Unidos, Canadá, Bangladesh, Paquistão e Sudão. Grande parte daquela turma não teria oportunidades de estudar em seus próprios países. Com uma única exceção, o restante era de muçulmanos. Todo mundo muito criativo, competente e bem preparado. Boa parte deles vinha da arquitetura ou design de moda. A faculdade tem todo tipo de laboratório - de fotografia, vídeo, fabricação digital, joalheria, um repositório de materiais, e por aí vai. E a biblioteca é deliciosa.

Meu período de residência começou com algumas conversas sobre lixo, descarte e reuso. O pessoal já tinha uma boa noção das questões críticas nessas áreas, mas nunca tinha sido uma prioridade para eles pensar nesses temas. Exibi e conversamos sobre alguns vídeos - ilha das flores, obsolescência programada, lixo extraordinário, digital handcraft.

Debatemos um pouco sobre uma questão que me parece essencial. Segue abaixo um rascunho do que deve voltar em breve como um texto à parte.

A tal "cultura maker" surgiu, ao menos em parte, em cenários que costumavam apontar para o reuso e o conserto como fundamentais para garantir futuros mais sustentáveis. Mas hoje em dia parece que tudo isso foi deixado de lado e que todo esse universo de hype está voltado para criar protótipos - feitos de plástico derretido de difícil reciclagem - de novos produtos. Como se o mundo já não tivesse objetos fabricados em demasia!

A mim, parece absurdo que as tecnologias de fabricação digital não estejam fundamentalmente voltadas para se pensar maneiras de continuar usando objetos que já estão por aí. Me parece inadequado e falso enquadrá-las na referência de uma "nova era industrial". A era industrial trouxe, é certo, avanços importantíssimos para a humanidade. Mas gerou também alienação, desigualdade e impacto ambiental profundos. Chega de dar sobrevida à era industrial - precisamos de outros modelos de produção e distribuição. O crescimento do interesse da opinião pública por alimentação orgânica, tratamento de lixo, habilidades manuais e afins me parecem ser o contrabalanço dessa tendência, e precisamos ter isso em mente.

Enfim, tivemos a oportunidade de debater estas questões (e o fato de eu conseguir resumi-las em dois parágrafos é um dos maiores frutos da minha residência na VCUQ), e decidimos as ações para as duas semanas que eu ficaria por lá. Em primeiro lugar, visitaríamos alguns artesãos que ainda produzem coisas com as próprias mãos - marceneiros, alfaiates, tapeceiros, etc. A ideia era conversar sobre seu ofício, habilidades, ferramentas, formação e afins. Faríamos o mesmo com pessoas que consertavam coisas - principalmente sapateiros e relojoeiros. Também planejamos saídas a um cemitério de pneus e um cemitério de automóveis, ambos no meio do deserto.

A pesquisa de campo deu muitos resultados. O único senão foi o cemitério de automóveis, que só pudemos ver do lado de fora porque chegamos depois do horário de visitações. Mas de resto, fizemos excelentes entrevistas, conversas e imagens.

Outra atividade que nos propusemos a desenvolver foi um Repair Cafe dentro da VCUQ. Em uma sociedade de alto poder aquisitivo e praticamente sem nenhuma preocupação com o descarte apropriado de objetos sem uso, pareceu-nos interessante desenvolver um encontro voltado ao conserto e ao reuso. Tivemos dois dias - um para receber os materiais e outro para explorar possibilidades com eles. Trabalhamos também com objetos encontrados no cemitério de pneus. Saímos com uma série de objetos reaproveitados, e mais do que isso com algumas indicações de como organizar uma metodologia colaborativa voltada ao conserto de coisas.

Os últimos dias foram dedicados a organizar a documentação de meu período por lá, que resultou em uma publicação digital. Tenho ainda que rever meu texto de introdução, que ainda não está perfeito, e em breve vou agitar para fechar essa publicação. Assim que rolar, publico por aqui.

De resto, faltam todos os meus apontamentos culturais e do cotidiano do Catar. Esses eu deixo para contar pessoalmente, talvez ao aroma do café turco que trouxe de lá. Mas voltei satisfeito de ter tocado uma série de questões importantes e de ter conhecido bastante gente interessante e que ainda vai fazer muita coisa pelo mundo afora.

E ainda reencontrei na sincronicidade uma amiga que não via fazia tempo, vi o sol descer nas dunas, tomei café numa tenda árabe no deserto. Fui ao shopping, ao supermercado, ao mercado central. Nos fones de ouvido estiveram principalmente a trilha sonora de Código 46 e o Ghost World do Dj Spooky. Ah, e tenho muito mais fotos no flickr.

P.S.: publiquei também mais algumas anotações junto a outro post no blog redelabs.